quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

ERA TEMPO DE GUERRA

O RANCHO NA GUERRA COLONIAL


Albano Mendes de Matos




Hora do rancho na guerra colonial.


O dia findava, estremecido nos horizontes. Estava na hora do rancho. Sargentos e soldados chegaram-se às cozinhas rodadas, situadas junto de um escarpado, entre a serração de madeiras e uma casa velha, com marmitas e copos de cantil nas mãos. Uns riam, outros ruminavam asneiras, enquanto outros, silenciosos, olhos no chão, pareciam estar muito longe daquele lugar. Um mundo de reacções animais e de comportamentos humanos, próprios para universo de pesquisa social e psicológica, laboratório de análises individuais e colectivas, para estudo de procedimentos recalcados, lutas intimistas e introvertidas, correntes de consciência desordenadas, projecções naturais demasiado extrovertidas, desequilíbrios orgânicos e funcionais, estados de pré-loucura, inventados ou reais.

Um auxiliar de cozinheiro lançava um quarto de casqueiro numa parte da marmita, outro, junto dos pipos, a tresandar e estearina, vazava, por medida, uns decilitros de vinho nos copos de cantil. Os caços, medidas certas, de uma só vez, saltavam nas bocarras dos caldeirões e levavam o rancho escaldante às marmitas, mal lavadas, porque em guerra não se limpam latas e o sarro ajuda a conservá-las. Os vapores subindo e esmorecendo nos ares. O capitão dos serviços, o primeiro-sargento e o furriel vagomestre dirigindo, fiscalizando e mantendo a disciplina. O rancho dos oficiais era levado, em terrinas, para uma sala, onde comiam, à ordem do comandante, numa mesa, em pratos das cantinas da carga ou nas marmitas.

Mediante algumas críticas, o tenente-coronel comandante não se cansava de falar aos soldados sobre a alimentação que, para ele, era uma das principais preocupações, a par da defesa e da segurança. Terminava sempre as argumentações dizendo que, na hora das refeições, muitas casas portuguesas, na Metrópole, não sequer tinham comida comparada com o rancho. Os soldados pensavam e não reclamavam.

Espalhados pelas pedras, pelos troncos, pelas escadas e pelos muros, os militares iam tragando o rancho, nas pressas da fome. Grão-de-bico, arroz e carne de porco salgada, tirada de barricas de madeira. Mais ou menos carne, consoante a sorte ou o azar. Febras, entremeados, gorduras, focinhos, orelhas, toucinhos e couratos por barbear. Uma massa forte e espessa, onde as pequenas colheres de bolso se mantinham na vertical, abundante e bem confeccionada, dizia o relatório do oficial responsável. O vinho, apanhado no copo meia-lua do cantil, em quantidades exíguas, para a maioria dos homens habituados à beberricagem, era escorropichado, no sabor da parafina, chisca a chisca, com um pingo para saborear no final. Corria o boato que não se devia beber, porque lhe deitavam uma mistela que tirava o tesão, para diminuírem as fogosidades.

- Este não sabia fazer a barba, ou não tinha gilette! - gracejou um soldado, atirando fora um naco de toucinho, com as cerdas em riste, que um cão lesto abocanhou.

- Há dois dias que não me passa comida de panela pelas goelas; com cabelos ou não, sabe-me bem! - disse outro, tragando sofregamente o quinhão.

- Lateiro é o que tu és! Muita larica tu deves ter passado, lá nas berças! - respondeu-lhe o camarada do lado.

- Enfarda que é a Pátria que paga! Ela trata-te bem! - comentou outro, acrescentando - E para grande fome não há ruim pão! Dizem na minha terra.

- Se lerpares, que é o que temos mais certo, vais de pança cheia! - gracejou um soldado, que ia mastigando os grãos e deitando fora a massa.

Um militar, já veterano em Úcua, de rosto muito tostado, cheirando a suores de semanas, chegou-se ao grupo e comentou:

- Estais aqui de passagem, com certeza, mas olhai que não é dos piores lugares; estamos ao pé da estrada e as coisas chegam-nos mais rápidas. Eles tratam-nos bem... De manhã, grão ou feijão com porco salgado ou massa ou arroz com atum e, à tarde, para variar, porco com feijão ou grão e atum com arroz ou massa... Por vezes, um pedaço de bacalhau salgado, ou liofilizado, ou lá o que seja, duro que nem cornos, que vem em latas bem soldadas, desfiado, com grão-de-bico.

- Olha este a querer dar música! – ripostou um soldado.

- A vinhola é que é uma pinguita, não dá para um homem lavar os dentes! - queixou-se um corpanzudo artilheiro.

- Mete-te muito nele, que ficas sem tusa! - gracejou o veterano em Úcua.

- Só faltava mais essa! Estás a brincar! - disse o artilheiro.

- Diz-se para aí que os tipos metem-lhe uma mistela, para um gajo não ter comichões! - respondeu o veterano.

- Porra! Lá vai!… - exclamou um soldado que escutava, atirando fora a ração de vinho.

- Acredito! Eles são capazes de tudo, até de nos capar! – gracejou o artilheiro.

- Apalpar, já nos apalparam algumas vezes, que é a rotina da tropa, nos quartéis; agora, levámos um grande apalpão, pontapeados para o fundo dos porões e para os cornos da guerra - comentou o veterano, olhando em volta.

- Alguns cobres para a Cuca, uma farda, uma espingarda e porco com cerdas de sapateiro, não está mal, não senhor... Tudo pela Pátria, que está em perigo, e pelas nossas famílias, que estão espalhadas por Angola, muitas em situações de dor, vagueando nas raias do medo - acrescentou um cabo, entre o humorístico e o sério.


ÚCUA, Angola, 27 de Julho de 1961.



1 Comentários:

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