quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

ERA TEMPO DE GUERRA

A NAVE IMPERIAL


PARTIDA DA BATERIA DE ARTILHARIA 147 PARA A GUERRA COLONIAL

ALBANO MENDES DE MATOS



No Cais da Rocha, as tropas aguardem a ordem de embarque

Embarque para o Vera Cruz


Embarque para o Vera Cruz


O Vera Cruz começa a navegar


Nas varandas do Cais de Rocha, as famílias, entre choros clamores e gritos, ficam acenando até o navio desaparecer ma bruma

Lisboa, 28 de Junho de 1961.

O Cais da Rocha era ponto imperial de partida para a guerra e ponto de regresso, embebido de tragédia ou de pavorosa alegria. Lugar ou não-lugar antropológico, no rigor e precisão do conceito, que ficou inculcado negativamente na memória de muitos portugueses, na maior parte das vezes como primeiro contacto com a capital, em situações circunstanciais e psicológicas dolorosas. Indeléveis recordações amarguradas das mães, dos pais, das mulheres e das namoradas, que na derradeira vez abraçaram os jovens, que as águas levavam, perdidos nos desencontros da Pátria, imolados nos altares da utopia ou nos infernos das aventuras, colonizadoras e evangelizadoras, entre nevoeiros perdidos nos limites da história lusitana.

Os derradeiros acordes da marcha militar da ordenança ecoaram no cais e esbateram-se na tristeza dos ares. A sirene roncou sucessivos toques graves, que fizeram estremecer as almas e os corpos dos soldados, empoleirados nos mastros e varandins do paquete Vera Cruz. Os familiares e amigos, dolorosamente apinhados nas varandas da despedida, soluçavam e agitavam lenços, que acudiam ao rebentar das lágrimas. Fátima, altar da fé! Cais da Rocha, altar de angústias, choros e desesperos.

O arcabouço da nave, agitado pelo tremedouro dos motores, começou a bambolear, para logo se encaminhar, firme, na rota dos mares, nos trilhos da guerra. Antigas estradas de Santa Maria, de audazes mareantes, de degredados contumazes, de irrecuperáveis piratas, de capitães honrados e de místicos arautos da fé cristã. Entre a espada e a cruz, o delírio da aventura, a abnegação dos heróis, a luxúria lusíada na ponta dos cios e os adultérios das mulheres sem maridos, na libertinagem dos costumes. Como nas picarescas tragicomédias de Mestre Gil, ourives, mestre da balança e laureado escrevinhador de autos e de comédias, adulador de senhores e autor de conceituadas e verrinosas críticas sociais.

Vivos os apertos de peitos contra peitos, na dor da separação. Os gritos uterinos das mulheres, mães ou Deméteres, doloridas pelos raptos dos filhos, esmoreciam nos tacteares da neblina, metamorfoseando-se com os pios agourentos das gaivotas. Os lenços, nos acenos da tristeza e das saudades, deixavam de riscar os ares, para susterem as lágrimas e acudirem aos humores da dor, que afloravam na vermelhidão das narinas.

A nave ou o monstro, Saturno a engolir os filhos e também os namorados, os pais e os amigos, esbatera-se na neblina, na penumbra dos horizontes ou nas águas infernais. Cronos engolia os filhos, prisioneiros de Hades, digeridos nas entranhas de ferro, em porões pestilentos, para serem vomitados nos portos da guerra, para os destinos de Reia ou da Mãe-Pátria, nos sertões de Angola.

O soldado Vinte-e-Quatro, Viriato Mateus, saloio natural da Região de Sintra, dado a descantes e cegadas, sempre com uma modinha nos lábios, logo rascunhou umas quadras, alusivas ao momento, que cantarolava, no porão-camarata, pelos corredores e pelas amuradas, quando o barco já se afastava da terra, para lá da barra. Não esquecia os pais, os familiares, os amigos, como entes queridos, e os lugares, como espaços de afectividade:


Adeus Sintra, adeus Lisboa,

Eu vou dar a despedida;

Adeus terra onde nasci,

Adeus, minha mãe tão boa.


Adeus, rapazes e raparigas,

Nascidos no nosso lugar;

Arriscar as nossas vidas,

Nós, aqui, vamos viajar.

O Vera Cruz singrava embalado nas águas, reptando na amplidão do oceano. Navio cativeiro, nos lamentos do soldado saloio que, perdido o bem passado, fora da sua liberdade, cantava:

Não faço mais que chorar,

No navio prisioneiro;

Onde nunca me adivinhei,

Cá vou neste cativeiro.

(Fotos de Albano Mendes de Matos)

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