segunda-feira, 10 de março de 2008

A MINHA GUERRA EM ANGOLA

A BATALHA DA PEDRA VERDE

1961

Albano Mendes de Matos

Um obus 8,8 cm na Sanzala Quissacala, em frente da Pedra Verde, 1961.


Pedra Verde

Preparação do obus 8,8 cm para tiro.


Militares artilheiros, os Peras, do 3º Pelotão da Bateria de Artilharia 147, em Quissacala, junto da Pedra Verde

Ambulância e jipe, nas imediações da Pedra Verde, para evacuação de feridos.




Na manhã do dia 28 de Julho de 1961, travou-se uma das mais longas batalhas da da Guerra em Angola. A Operação, envolvendo um Pelotão Reforçado de Infantaria de Luanda, o Esquadrão de Cavalaria 149, a 4ª Companhia de Caçadores Especiais e o 3º Pelotão da Bateria de Artilharia 147, com armas ligeiras, pesadas e obuses, prolongou-se por mais de seis intermináveis horas. O palco ou o campo de batalha situava-se nas imediações da Pedra Verde, morro pedregoso, denominado Camucugonlo, com incidência na Picada da Catuta ou Senvo, Região dos Dembos, a Nordeste de Úcua, onde se acoitavam os guerrilheiros angolanos.

Na altura, tinha na ideia fazer reportagens escritas e fotográficas. As fotografias só foram tiradas a posteriori, mas o registo visual, ficou indelével na memória.

Registo parcial das minhas memórias nas acções na Pedra Verde.

A Operação de progressão foi suspensa. Havia que trazer os mortos e os feridos. A decisão foi tomada, sem demoras. Segundos podem salvar vidas. Indecisões podem causar tragédias.
O sargento enfermeiro e os maqueiros tinham que ir, por dever de especialidade. Outros militares foram voluntários. A solidariedade e a fraternidade acima de tudo. A guerra une os homens, fortifica o sentido de irmandade. O dever de assistir o irmão em sofrimento surge como valor supremo. O altruísmo, sempre como primeiro valor, nos transes difíceis.
Um condutor artilheiro, homem tripeiro, cara picada pelas bexigas, correu para o jipão. O soldado Elias arrumou duas macas na viatura e o sargento enfermeiro mandou seguir, com duas bolsas de socorrista. O jipão entrou na picada, curvou para a esquerda do monte Senvo e desapareceu engolido pelos capins.
O tenente-coronel comandante, sempre penteado para a guerra, binoculava os terrenos avante, o morro Senvo salpicado de arbustos, a clareira aberta de luz, mas fechada de segredos, a mata a ondear para os horizontes do rio Dange, o morro Camucongolo ou Pedra Verde a namorar com as antropomórficas Lemba-Lemba, elevações semelhantes a duas mamas, cristas elevadas ao rés dos céus e dos deuses. Sempre de pé, o comandante afirmava aparente serenidade, perante o desespero das horas, na corrida dos ponteiros, e a batalha para ganhar. Em presença, as memórias loucas de Alcácer Quibir ou o Quinto Império, na utopia de Vieira, a esfumar-se em manhã de névoas. Uma guitarra a trinar lamentações. O fado de ser português aventureiro e sonhador. Fernão Mendes Pinto, sem lei nem paz, da deriva dos sertões. O mundo disperso, feito de esperanças e de saudades. O nevoeiro da manhã trágica era a certeza a entrar nas realidades pátrias. Ou Pessoa na hora absurda e adversa da com a Mensagem premonitória.
O jipão artilheiro parou no local de segurança, onde o capitão Caçador Especial coordenava a condução das operações, no melhor dos mundos possíveis. A tragédia de Unamuno ou o optimismo de Voltaire, para além das crenças em milagres e das protecções das santas e dos santos, no rasto das divindades primitivas e das mentalidades arcaicas. As pressas na resolução da situação, que as fianças na Virgem não são tomadas em tempo de guerra.
O sargento enfermeiro, ovarense dos três costados, já um pouco cacimbado, dado à poesia popular, cantava, em quadras redondas, as saudades da mulher, do quintal, das couves e das alfaces repolhudas, cerceadas por lesmas e caracóis, tomou conta da situação e dos esforços a empreender. Lado a lado com o soldado Elias ou Golias, ambos arrastavam uma maca, aproveitando o sulco de uma pequena ravina que corria, pela direita, na direcção dos feridos e dos dois socorristas. Rastejavam puxando as macas, palmo a palmo, que, para maiores facilidades, foram atadas a um pé. Improvisação que não consta dos manuais da evacuação bélica. As balas picavam nas proximidades, num plano mais elevado. O mais pequeno descuido seria a morte. Sempre rastejando, rentes ao solo, o sargento e o soldado Elias ou Golias chegaram junto do alferes Pombinho que, deitado de costas, gemia dolorosamente, contorcendo-se em angústias de morte. O peito da camisa em postas de sangue e de poeira, com as negras varejeiras sugando os coágulos, numa avidez estonteante, sempre a saltitarem, com zumbidos de asas, em revoadas enervantes. Os olhos do oficial revirados para o branco, o rosto pálido, os membros em tremuras palúdicas. Um fiozito de sangue a escorrer do nariz e a cair na boca, onde borbulhava uma respiração ofegante. O alferes angolano, tomado de pavor e de angústia, no jardim de Getsêmani, não de olivas, mas de cafezeiros, justiçado através do sacrifício, sangrava no calvário da Pidada da Catuta. Com as forças que ainda lhe restavam, gritava:
- Matem-me!... Matem-me!... Por favor!...
Em esforços de raiva, o sargento enfermeiro e o soldado Elias ou Golias ajeitaram carinhosamente o corpo do alferes na maca e ajustaram levemente as cintas imobilizadoras. Entre a vida e a morte, no jogo da guerra, nos transes da raiva e do desespero. Na miséria dos homens que mandavam na guerra, para lá da protecção e dos desígnios dos deuses, que a Pátria invocava, para justificar a sua acção civilizadora, na catequização dos negros, apresentando-os como crianças adultas, de pensamento e espírito pré-lógicos, carentes da ensinança lusíada.
Chegaram ao corpo de um soldado negro, que apanhara uma rajada pelas pernas, esmigalhando-lhe os ossos. Olhos muito abertos e uns ligeiros suspiros nos lábios sangrando poeiras. Os calções azuis ensanguentados. E sempre as moscas varejando. O preço de ser português, com o nome registado nos papéis do Imposto de Palhota e nos cadernos do trabalho voluntário para o Estado, ou a dívida para com uma Pátria longínqua, para lá dos mares e dos céus. Arrumaram o ferido na maca. Outros feridos esperavam mão salvadora, mão que os libertasse daquela descida aos infernos da guerra, na Picada da Catuta, na picada da morte, arvorada em visão dantesca e demoníaca, onde os clamores eram uivos de raiva. Que os mortos seriam retirados depois.
Os Caçadores Especiais sempre a fazerem fogo de protecção, varriam a saída da mata, que era zona de morte, cobrindo a acção de salvamento dos feridos e da recolha dos mortos.
Como transportar as macas com os corpos feridos?
A pulso, sem cobertura natural do terreno, era impossível sem serem atingidos pelos tiros dos guerrilheiros. Puxar pelas macas pesadas, a rastejar, era penoso e difícil. O sargento enfermeiro mandou um maqueiro comunicar ao capitão Caçador Especial que precisava de cordas para retirar os feridos. O capitão mandou uma estafeta à tropa da retaguarda a pedir as cordas. Por sorte, a palamenta dos obuses estava dotada de cordas com dez metros. Logo a estafeta, qual Mercúrio de pés alados, no jipão da Artilharia, correu com as cordas misericordiosas através do Monte Senvo ou Olimpo, na Maratona trágica da Catuta.
O sargento enfermeiro rastejou para a maca do alferes. O soldado Elias ou Golias rastejou para a outra maca. Ataram as cordas às macas, com firmeza, de modo a poderem ser puxadas. Afastaram-se uns metros e experimentaram. As macas deslizaram sem grandes dificuldades. Rastejaram e esticaram as cordas no seu comprimento. O sargento enfermeiro, o soldado Elias ou Golias e os dois soldados maqueiros puxaram pelas cordas. As macas, empeçando nos caules do capim e nas saliências do solo, venceram as distâncias para a segurança, para a libertação. Chegou primeiro a maca com o alferes, que logo foi levada para o jipão da Artilharia, que de imediato arrancou para a estrada. Depois, a maca com o soldado negro, que foi levado, em braços, para a retaguarda, até ao regresso do jipão. O soldado Elias ou Golias rastejou, com a maca, sempre praguejando, “Filhos duma puta! Filhos duma puta!”, para junto do outro soldado negro, ferido numa anca e um tiro no pescoço. Colocou-o na maca e procedeu de igual modo, até o ferido estar em lugar seguro e logo foi transportado para a zona de reunião, determinada pelo capitão Caçador Especial.
O terceiro ferido, um soldado negro, já não precisou de maca. A Parca da morte cortara-lhe o fio da vida, derramando-lhe o sangue no campo da honra, na Picada da Catuta. Honra, palavras eivada de crença nacionalista, com sentido simbólico na ara dos sacrifícios patrióticos, de negros e de brancos, imolados em nome de uma civilização, no Altar da Pátria.
- Matem-me!... Matem-me!... Por favor… matem-me!... - gritava o alferes Pom-binho, rasgando a camisa, com mãos agitadas por excessos de dor e de rancor.
O alferes miliciano médico preparou-o para a evacuação, adaptando compressas nas feridas, mumificando-lhe o tronco com algodão e ligaduras. Injectado com morfina, com o rosto lívido, fechado numa máscara de dor, foi acomodado na maca de campanha. Colocada a maca num jipe, improvisado de ambulância, foi levado para Úcua, onde uma avioneta o esperava, numa pista de aterragem improvisada numa plantação de sisal, para o transportar para o Hospital Militar, acompanhado por uma enfermeira paraquedista, que fazia o seu baptismo de guerra, na evacuação de feridos em combate.
- Matem-me!... Matem-me!... - foram os últimos gritos do alferes Pombinho, abafados pelo roncar do jipe-ambulância.
Na berma da estrada, ficaram, enrolados pelo vento, os farrapos ensanguentados da camisa azul esbranquiçado do alferes, talvez o alvo que o vitimou.
O jipão artilheiro, viatura de ligação entre a frente de batalha e a retaguarda, logo chegou com os dois soldados negros feridos. O soldado Elias ou Golias saltou do jipão e, correndo para o alferes artilheiro, gritou, meio perdido do juízo:
- Meu alferes!... Aquilo é uma assombração!...
- Calma, Elias!... – disse o alferes.
- Uma assombração, meu alferes!... É de um gajo dar em doido!...
Depois de um comovido silêncio, o soldado continuou:
- Há lá mortos estendidos pelo capim, crivados de balas, por aqueles filhos de uma puta! Precisam é de bordoada nos cornos! Grandessíssimos cabrões!
- Senta-te um pouco. Acalma-te. Que não há-de ser nada.
- Não há-de ser nada?... Aquilo?...
- É da guerra, Elias!
- Uma guerra de merda e de mortandade é o que é!...
Observados pelo médico e tratados pelos maqueiros, de imediato, os feridos seguiram para Úcua, numa GMC improvisada de ambulância. Feridos, libertaram-se do inferno e da morte.
- As misérias da guerra são os mortos, os feridos, os estropiados! - disse o médico miliciano para o tenente-coronel comandante.
- Não fomos nós que a inventámos! É tão velha como o homem! - comentou o tenente-coronel comandante, passando a mão pelo risco do penteado.
Na frente de batalha, parecia agora haver alguma acalmia. Os disparos eram espaçados. Ouvia-se um ou outro metralhar, ao longe, para os lados da Pedra Verde. Ou os guerrilheiros estavam a retirar ou eram disparos ardilosos, simulando a retirada.
- Os gajos não são matumbos, não! – comentou o alferes artilheiro para o comandante, que lhe fora ordenar para fazer mais umas sessões de tiro de flagelação sobre a picada da Catuta.

4 Comentários:

Às 3 de abril de 2011 às 14:34 , Blogger Jose Reis Neves disse...

MATOS
Amigo e colega destas lutas. Recordo a nossa 1ª actuação da 1ª vez na PEDRA VERDE, onde tivemos o nosso Baptismo de Fogo. Com a situação desesperada do cerco que nos estava a ser feito; com as tropas de INFANTARIA, com falta de munições, retirados da frente, protegidos, agachados numa vala atrás de nós. Foi a nossa 3ª SECÇÂO da BATERIA 147, que fazendo fogo directo com os 2 OBUSES salvaram e superaram a situação escrevendo mais umas páginas da História da BAT. ARTILHARIA 147 e de PORTUGAL.
Com um abraço amigo recordo esse dia 27-28 de Julho de 1961 JOSÉ REIS NEVES

 
Às 3 de abril de 2011 às 15:26 , Blogger Jose Reis Neves disse...

MATOS
Na recoração do combate, como que vivendo aqueles momentos só me veio à mente, a minha 3ª SECÇÃO. Não posso deixar de fazer justiça; pois todos nós estivemos activos. Mas sendo correcto dizer que foi o 3º PELOTÃO da BATERIA DE ARTILHARIA 147 com os seus 2 OBUSES da 3ª SECÇÃO e a 5ª SECÇÃO, que salvaram todos os presentes nesta batalha da 1ª tentativa de conquistar a célebre PEDRA VERDE. O que só em 18 de Setembro de 1961iria acontecer na "Operação Esmeralda", melhor organizada mas também com a presença só das duas mesmas SECÇÕES do mesmo 3º PELOTÃO DA BATERIA DE ARTILHARIA 147, não esquecendo a BAT.ART.146 e os Militares das várias Unidades de INFANTARIA. Reposto o esclarecimento com a amizade de JOSÉ REIS NEVES

 
Às 12 de março de 2018 às 08:14 , Blogger José Monteiro disse...

Tenho algum receio, decorridos que são 7 anos, que algum ou alguns dos aqui intervenientes, possa ter deixado de ler, de se zangar, de recordar a Guerra, dita do Ultramar, que prefiro chamar de Guerra Colonial, e alguem ficar triste por voltar a activar esta mina antipessoal!
Confesso: a minha guerra foi de curta duração, apenas 26 dias de destacamento na Bateria de Artilharia 147, substituindo um outro camarada, furriel miliciano também, que fora hospitalizado dois dias antes do avanço para a Operação Esmeralda. E só podia ser eu e não outro, por que no Pelotão de Comando eServiços 157, só eu era da arma de Artilharia, e a mobilização seria para fazer o reabastecimento das baterias 145, 146 e 147, por ter feito ã especialização, em Sacavém, de Munições de Artilharia, mas dando uma lambusadela em todas as outras munições! Tinha o comando da secção de reabastecimento, composta por 6 motoristas, que só uma vez exercemos a função: 1 de Dezembro de 1961, fazendo um reabastecimento, que nos armazéns do Sisal, no Úcua foram transformados em paiol.
O destacamento na Bateria 147 sucedeu no inicio de Setembro e, como as secções estavam formadas, eu chefiei a secção de Observação e Defesa Imediata, composta de 5 soldados, 1 cabo apontador e o motorista! Depois de 3 dias na Fazenda Tentativa, eram para ser só 2, arrancámos para a citada Operação Esmeralda, chegando à Kibaba já de noite! Furriel miliciano, Monteiro que a 26 do mesmo mês regressou a Luanda e o outro camarada seguiu para a Kibaba! Acompanhei os Caçadores que foram ocupar a já despovoada Kissacala e dois dias depois os que foram tomar a Gombo do Zombo! A minha passagem pela Kissacala, ficou, em jeito de poesia, assim registada:

não sabia, nem sei, qual o número de caracteres autorizado, mas sei agora que no máximo serão 4 096! O poema vai no próximo comentário!Abraços e Felicidades!

 
Às 22 de junho de 2023 às 09:14 , Blogger bruno moleiro disse...

Tantos jovens que perderam a vida na flor da idade. Hoje, a alguns anos de distancia eu pergunto: para quê ? Apenas para servir alguns interesses. Fica o m regozijo: esses que nos sacrificaram c a guerra, também morrem ou morreram.
Paz p a alma dos jovens que no Ultramar perderam suas vidas.

 

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