quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

A MINHA GUERRA
Albano Mendes de Matos

MORTO EM PIRI
Em memória de um soldado morto na Guerra Colonial, em Agosto de 1961.

Breve era o fulgor do teu rosto

embalado na farda da pátria

inocentes estilhaços do teu país

fantasmas sibilinos

de outros mundos

sem protestos te imolaram

só a embriaguês do silêncio

moldou a tua máscara de mártir

como se fosse o último dia do mundo

arrefeceste aos ventos da história

pária da pátria

perdidos os murmúrios do sangue

que funestamente te roubaram

depois de tudo

- só a dor e o luto

ficaram

nos ventos tresmalhados.

Uivos e clamores renascem nos cafezais do Piri.

Enterramento de um soldado, morto em combate, em Piri, Dembos, Angola, no terreno de secagem de café, em Agosto de 1961.

Cemitério militar em Piri, Dembos, Angola.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

ERA TEMPO DE GUERRA

A NAVE IMPERIAL


PARTIDA DA BATERIA DE ARTILHARIA 147 PARA A GUERRA COLONIAL

ALBANO MENDES DE MATOS



No Cais da Rocha, as tropas aguardem a ordem de embarque

Embarque para o Vera Cruz


Embarque para o Vera Cruz


O Vera Cruz começa a navegar


Nas varandas do Cais de Rocha, as famílias, entre choros clamores e gritos, ficam acenando até o navio desaparecer ma bruma

Lisboa, 28 de Junho de 1961.

O Cais da Rocha era ponto imperial de partida para a guerra e ponto de regresso, embebido de tragédia ou de pavorosa alegria. Lugar ou não-lugar antropológico, no rigor e precisão do conceito, que ficou inculcado negativamente na memória de muitos portugueses, na maior parte das vezes como primeiro contacto com a capital, em situações circunstanciais e psicológicas dolorosas. Indeléveis recordações amarguradas das mães, dos pais, das mulheres e das namoradas, que na derradeira vez abraçaram os jovens, que as águas levavam, perdidos nos desencontros da Pátria, imolados nos altares da utopia ou nos infernos das aventuras, colonizadoras e evangelizadoras, entre nevoeiros perdidos nos limites da história lusitana.

Os derradeiros acordes da marcha militar da ordenança ecoaram no cais e esbateram-se na tristeza dos ares. A sirene roncou sucessivos toques graves, que fizeram estremecer as almas e os corpos dos soldados, empoleirados nos mastros e varandins do paquete Vera Cruz. Os familiares e amigos, dolorosamente apinhados nas varandas da despedida, soluçavam e agitavam lenços, que acudiam ao rebentar das lágrimas. Fátima, altar da fé! Cais da Rocha, altar de angústias, choros e desesperos.

O arcabouço da nave, agitado pelo tremedouro dos motores, começou a bambolear, para logo se encaminhar, firme, na rota dos mares, nos trilhos da guerra. Antigas estradas de Santa Maria, de audazes mareantes, de degredados contumazes, de irrecuperáveis piratas, de capitães honrados e de místicos arautos da fé cristã. Entre a espada e a cruz, o delírio da aventura, a abnegação dos heróis, a luxúria lusíada na ponta dos cios e os adultérios das mulheres sem maridos, na libertinagem dos costumes. Como nas picarescas tragicomédias de Mestre Gil, ourives, mestre da balança e laureado escrevinhador de autos e de comédias, adulador de senhores e autor de conceituadas e verrinosas críticas sociais.

Vivos os apertos de peitos contra peitos, na dor da separação. Os gritos uterinos das mulheres, mães ou Deméteres, doloridas pelos raptos dos filhos, esmoreciam nos tacteares da neblina, metamorfoseando-se com os pios agourentos das gaivotas. Os lenços, nos acenos da tristeza e das saudades, deixavam de riscar os ares, para susterem as lágrimas e acudirem aos humores da dor, que afloravam na vermelhidão das narinas.

A nave ou o monstro, Saturno a engolir os filhos e também os namorados, os pais e os amigos, esbatera-se na neblina, na penumbra dos horizontes ou nas águas infernais. Cronos engolia os filhos, prisioneiros de Hades, digeridos nas entranhas de ferro, em porões pestilentos, para serem vomitados nos portos da guerra, para os destinos de Reia ou da Mãe-Pátria, nos sertões de Angola.

O soldado Vinte-e-Quatro, Viriato Mateus, saloio natural da Região de Sintra, dado a descantes e cegadas, sempre com uma modinha nos lábios, logo rascunhou umas quadras, alusivas ao momento, que cantarolava, no porão-camarata, pelos corredores e pelas amuradas, quando o barco já se afastava da terra, para lá da barra. Não esquecia os pais, os familiares, os amigos, como entes queridos, e os lugares, como espaços de afectividade:


Adeus Sintra, adeus Lisboa,

Eu vou dar a despedida;

Adeus terra onde nasci,

Adeus, minha mãe tão boa.


Adeus, rapazes e raparigas,

Nascidos no nosso lugar;

Arriscar as nossas vidas,

Nós, aqui, vamos viajar.

O Vera Cruz singrava embalado nas águas, reptando na amplidão do oceano. Navio cativeiro, nos lamentos do soldado saloio que, perdido o bem passado, fora da sua liberdade, cantava:

Não faço mais que chorar,

No navio prisioneiro;

Onde nunca me adivinhei,

Cá vou neste cativeiro.

(Fotos de Albano Mendes de Matos)

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

ERA TEMPO DE GUERRA

O RANCHO NA GUERRA COLONIAL


Albano Mendes de Matos




Hora do rancho na guerra colonial.


O dia findava, estremecido nos horizontes. Estava na hora do rancho. Sargentos e soldados chegaram-se às cozinhas rodadas, situadas junto de um escarpado, entre a serração de madeiras e uma casa velha, com marmitas e copos de cantil nas mãos. Uns riam, outros ruminavam asneiras, enquanto outros, silenciosos, olhos no chão, pareciam estar muito longe daquele lugar. Um mundo de reacções animais e de comportamentos humanos, próprios para universo de pesquisa social e psicológica, laboratório de análises individuais e colectivas, para estudo de procedimentos recalcados, lutas intimistas e introvertidas, correntes de consciência desordenadas, projecções naturais demasiado extrovertidas, desequilíbrios orgânicos e funcionais, estados de pré-loucura, inventados ou reais.

Um auxiliar de cozinheiro lançava um quarto de casqueiro numa parte da marmita, outro, junto dos pipos, a tresandar e estearina, vazava, por medida, uns decilitros de vinho nos copos de cantil. Os caços, medidas certas, de uma só vez, saltavam nas bocarras dos caldeirões e levavam o rancho escaldante às marmitas, mal lavadas, porque em guerra não se limpam latas e o sarro ajuda a conservá-las. Os vapores subindo e esmorecendo nos ares. O capitão dos serviços, o primeiro-sargento e o furriel vagomestre dirigindo, fiscalizando e mantendo a disciplina. O rancho dos oficiais era levado, em terrinas, para uma sala, onde comiam, à ordem do comandante, numa mesa, em pratos das cantinas da carga ou nas marmitas.

Mediante algumas críticas, o tenente-coronel comandante não se cansava de falar aos soldados sobre a alimentação que, para ele, era uma das principais preocupações, a par da defesa e da segurança. Terminava sempre as argumentações dizendo que, na hora das refeições, muitas casas portuguesas, na Metrópole, não sequer tinham comida comparada com o rancho. Os soldados pensavam e não reclamavam.

Espalhados pelas pedras, pelos troncos, pelas escadas e pelos muros, os militares iam tragando o rancho, nas pressas da fome. Grão-de-bico, arroz e carne de porco salgada, tirada de barricas de madeira. Mais ou menos carne, consoante a sorte ou o azar. Febras, entremeados, gorduras, focinhos, orelhas, toucinhos e couratos por barbear. Uma massa forte e espessa, onde as pequenas colheres de bolso se mantinham na vertical, abundante e bem confeccionada, dizia o relatório do oficial responsável. O vinho, apanhado no copo meia-lua do cantil, em quantidades exíguas, para a maioria dos homens habituados à beberricagem, era escorropichado, no sabor da parafina, chisca a chisca, com um pingo para saborear no final. Corria o boato que não se devia beber, porque lhe deitavam uma mistela que tirava o tesão, para diminuírem as fogosidades.

- Este não sabia fazer a barba, ou não tinha gilette! - gracejou um soldado, atirando fora um naco de toucinho, com as cerdas em riste, que um cão lesto abocanhou.

- Há dois dias que não me passa comida de panela pelas goelas; com cabelos ou não, sabe-me bem! - disse outro, tragando sofregamente o quinhão.

- Lateiro é o que tu és! Muita larica tu deves ter passado, lá nas berças! - respondeu-lhe o camarada do lado.

- Enfarda que é a Pátria que paga! Ela trata-te bem! - comentou outro, acrescentando - E para grande fome não há ruim pão! Dizem na minha terra.

- Se lerpares, que é o que temos mais certo, vais de pança cheia! - gracejou um soldado, que ia mastigando os grãos e deitando fora a massa.

Um militar, já veterano em Úcua, de rosto muito tostado, cheirando a suores de semanas, chegou-se ao grupo e comentou:

- Estais aqui de passagem, com certeza, mas olhai que não é dos piores lugares; estamos ao pé da estrada e as coisas chegam-nos mais rápidas. Eles tratam-nos bem... De manhã, grão ou feijão com porco salgado ou massa ou arroz com atum e, à tarde, para variar, porco com feijão ou grão e atum com arroz ou massa... Por vezes, um pedaço de bacalhau salgado, ou liofilizado, ou lá o que seja, duro que nem cornos, que vem em latas bem soldadas, desfiado, com grão-de-bico.

- Olha este a querer dar música! – ripostou um soldado.

- A vinhola é que é uma pinguita, não dá para um homem lavar os dentes! - queixou-se um corpanzudo artilheiro.

- Mete-te muito nele, que ficas sem tusa! - gracejou o veterano em Úcua.

- Só faltava mais essa! Estás a brincar! - disse o artilheiro.

- Diz-se para aí que os tipos metem-lhe uma mistela, para um gajo não ter comichões! - respondeu o veterano.

- Porra! Lá vai!… - exclamou um soldado que escutava, atirando fora a ração de vinho.

- Acredito! Eles são capazes de tudo, até de nos capar! – gracejou o artilheiro.

- Apalpar, já nos apalparam algumas vezes, que é a rotina da tropa, nos quartéis; agora, levámos um grande apalpão, pontapeados para o fundo dos porões e para os cornos da guerra - comentou o veterano, olhando em volta.

- Alguns cobres para a Cuca, uma farda, uma espingarda e porco com cerdas de sapateiro, não está mal, não senhor... Tudo pela Pátria, que está em perigo, e pelas nossas famílias, que estão espalhadas por Angola, muitas em situações de dor, vagueando nas raias do medo - acrescentou um cabo, entre o humorístico e o sério.


ÚCUA, Angola, 27 de Julho de 1961.



terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

BLOGUE CENASDEGUERRA

ALBANO MENDES DE MATOS

O blogue CENASDEGUERRA tem por fim recordar algumas vivências do autor na Guerra Colonial, nos anos de 1961-1963 e 1965-1968, em Angola, e 1972-1974, na Guiné.