terça-feira, 10 de junho de 2008

UMA PRISIONEIRA NA GUERRA COLONIAL


Albano Mendes de Matos

Era num dia sereno. Não fosse a guerra, podia dizer-se feliz.

A secção prosseguia no silêncio e nas cautelas próprias da acção ou batida de reconhecimento, nas terras de Gombe-ia-Muquiama, a meio caminho entre a Pedra Verde e lugar de Piri, vespeiro de guerrilheiros, nos relatórios inflamados das informações. Militares vigilantes, atentos aos trilhos, procurando vestígios do inimigo. Todos os olhares em redor da picada. Lonas e borrachas pousando na leveza dos rastos. Nas areias soltas do terreno. Sem ruídos. Nem sussurros. Apenas sinais. Polegar para a direita. Polegar para a esquerda. Mão estendida para a frente. Mão curvada para trás. Palma para o chão parar. Indicador nos olhos espiar. Indicador nas orelhas escutar. A prudência. A cautela. O sinal, o símbolo e a comunicação. O esoterismo e os malabarismos das circunstâncias. A audácia dos heróis. A palidez dos medricas. E a certeza da guerra, na vivência dos dias. Só guerra parida em todas esquinas, em todas as sombras, em todas as horas. No mexer das folhas. Nos troncos das árvores. Nos cheiros dos capins. No verde das ramagens. A esperança de não se lerpar. Guerra nos ventos e nos horizontes sem fim. E o horror da morte ajustado a todos os lugares. Nas realidades desta guerra, a alegria era estar-se vivo. Sentir-se a vida a pulsar, o sangue a palpitar nas veias. A sorte da roleta a rodar sobre as cabeças.

Como num relâmpago, instintivo pânico invadiu militares. Os ares riscaram-se de cores. Nas colinas dos medos e do terror. Vulto humano ou fantasma? A guerrilha tem os seus fantasmas, produzidos pelas aberrações da consciência, quando a atenção contínua e a ansiedade geram visões virtuais. Um dos soldados da dianteira não teve a calma suficiente. De pé, disparou de imediato. Funcionou o instinto de conservação. O subconsciente fervilhou num ímpeto. Acto contínuo, o dedo afagou o gatilho. As balas partiram. Zuniram nos ares. Atirar antes do inimigo atirar, na lógica da guerra. Princípio fundamental para a integridade do combatente. Isso, sentiam os militares. Necessariamente instruídos. O furriel miliciano comandante da secção deu uma palmada numa perna do atirador, gritando-lhe que se lançasse no chão e se abrigasse. Secção em terra, dispostos os soldados em posição de defesa, a zona foi batida pelo fogo, como provocação para uma resposta. Disparos de reconhecimento. Mas só o silêncio envolvia a picada. As arcadas dos peitos oscilavam de ansiedade. As respirações aceleradas. As lágrimas dos suores a descerem pelas faces. Eram momentos de grande tensão, onde se jogava a vida. Onde se podia morrer e onde se poderiam forjar heróis. Que a Pátria agradecia, pela palavra dos senhores mandantes das guerras e das políticas.

A poucos metros, uma silhueta de mulher negra ergueu-se atemorizada. Pés nus e gretados. Pernas abertas e braços levantados. Paralisada. Hirta. Panos escorridos até às saliências dos joanetes. Olhos parados de branco. Estátua de madona helénica. Antígona no campo de batalha, ante os dois irmãos contendores. Sempre no absurdo da guerra, a simbólica da mulher pacificadora. A mulher nos limites do pranto, nas orlas da morte.

Um soldado apontou-lhe a arma. O cano tremia, na oscilação da mirada. De imediato, o furriel desviou-a com uma pancada. O peso do silêncio amedrontava. O Sol ardia na terra ressequida. O desconhecido e o medo para além dos exíguos limites dos horizontes. A mulher paralisada. Perdida.

Secção organizada em posição de segurança, o furriel aproximou-se da negra, que continuava imóvel e fechada em pleno mutismo. Estátua de ébano, nos rumores do desespero. Apenas estremeciam as dobras do pano e remexiam as arcadas do peito arquejando, com as marés da respiração. A boca rasgada em jeito de comoção e espanto. Lábios bulindo levemente. Os olhos pupilando de medo. Os soldados aproximaram-se. O furriel falou-lhe. Ela não respondeu. “Não fala puto” - diz um militar. Súbito, um jacto de urina rebentou entre as pernas da negra. Escorreu para a terra. Uma mancha de lama alastrou entre os seus pés. O medo gerou a incontinência. Reflexos fisiológicos da comoção, em emoções de pânico. Perturbadoras tensões psíquicas e desequilíbrios emocionais condicionaram a fisiologia normal e geraram situações de involuntárias excreções. Os panos impregnados de urina plasmaram-se nas pernas. Estátua viva começou a tremer. As mãos agarraram os panos e torceram-nos sobre o peito. A luminosidade da tarde era rarefeita pelas cortinas de um cacimbo leve. O silêncio impregnava os ares. A negra incomodada. Ave perdida na violência do momento. E os soldados aguardando o desfecho da situação.

- Até te mijas, sua puta!... - gritou um soldado.

A negra acomodou-se no chão. Sentada. Pernas flectidas, joelhos afastados, pés cruzados, para trás. As mãos nervosas sempre a torcerem as pontas dos panos, com tremuras de pasmo ou de terror. Sem uma fala ou um murmúrio.

Puxada pela mão, obrigaram-na a caminhar. Troféu de guerra: prisioneira. Talvez mensageira dos guerrilheiros. Nessa condição, foi conduzida, ao aquartelamento, sob a cortesia dos soldados, já tomados de piedade e de dó. Não emitiu qualquer fala ou lamento. Apenas os olhos, muito abertos, pareciam espelhar os medos que lhe corriam no espírito.

Percorridos alguns quilómetros a negra parecia desfalecer. Sentada, apoiada pelo soldado Elias ou Golias, sugou avidamente uma chisca de água que lhe chegaram aos lábios ressequidos. “Dá-lhe é mijo, ou merda!...”, gritou um soldado. Os olhos submissos da negra agradeceram, com um lampejo de alegria. O corpo tremia-lhe. Enlaçou os dedos e apertou as mãos sobre o peito. Em volta, os militares em guarda tagarelavam e comentavam o estorvo que lhes fazia a prisioneira. “Um tiro nos cornos é o que ela merece”- comentavam alguns.

O soldado Elias ou Golias, herói da Pedra Verde, sempre voluntário, levantou a negra, baixou-se por trás, enfiou pescoço por entre as pernas dela e içou-a às cavalitas. A segurá-la pelos pulsos, carregou-a até à base da tropa, incomodado pelos odores da urina, que se evaporava dos panos. O corpo da negra, curvado sobre a cabeça do militar, rebentando de calores e suores, oscilava ao ritmo das passadas. De vez em quando, quebrava a mudez com um gemido. Talvez de dor. Talvez de agradecimento. A solidariedade e a fraternidade para com a população inimiga também existiam na guerra, para além de todas as violências e de todas as brutalidades.

Nas desvairadas terras angolanas, morria-se na guerra, morria-se por ferroadas de abelhas, morria-se pela picada da serpente surucu, morria-se de paludismo, morria-se de biliosa, morria-se com uma cornada de pacaça, morria-se na calema das praias e nas correntes dos rios, morria-se por engano, morria-se de traição e morria-se de pasmo. Por isso, nas cargas dos batalhões vinham caixões, para embrulhar os mártires, e padres para os rituais da encomendação das almas, tivessem sido os mortos cristãos ou não.

A prisioneira, sentada num banco do improvisado refeitório era motivo de curiosidade, de dó e de raiva. Deram-lhe comida. Singelo acto de piedade. Mas olhou-a com desprezo. Levou a mão em concha à boca e cuspiu para o lado. Foi encerrada numa barraca de madeira, que servia de prisão. Chegou-se a um canto, imóvel, na rigidez do medo. Estatueta de pensador quioco. Olhos fixados nas tábuas. Pensamento nos mistérios da vida. Ou em nada. No delírio dos terrores.

O capitão comandante chamou o Camões, negro servente que se apresentara da mata, fugido aos guerrilheiros, e trabalhava na tropa, pela comida e pela segurança, para ver se ele conseguia que a negra falasse.

O servente era alcunhado de Camões por ter um só olho. O outro fora-lhe arrancado por uma onça, que o atacara e lhe rasgara a face com as garras, quando, numa noite, ele abrira a porta da cubata, na sua tonga, para averiguar o que se passava, ao ouvir ruídos, nas proximidades.

- Camões vais à prisão e vê se consegues que a mulher fale - disse-lhe o oficial.

- Sim, meu capitão! - respondeu o Camões.

- Pergunta-lhe de onde é e o que fazia na mata - acrescentou o capitão.

- Está bem, meu capitão! Mas parece-me que ela não é destas terras - respondeu o negro Camões.

Capitão e soldados ficaram à espera que o Camões saísse da barraca com novidades. Passados uns minutos, o Camões saiu, rindo e coçando a cabeça.

- Então, o que disse ela, Camões? - perguntou o capitão.

- Ah, meu capitão!...- disse o servente.

- Desembucha, Camões!...O que disse ela?... - volveu o oficial, perante o silêncio de Camões.

- Abriu as pernas e: pumba!..., pumba!... - respondeu o negro, sumindo o olho que lhe restava e escancarando a boca de riso. Um riso boçal de satisfação.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

A MINHA GUERRA NA GUINÉ-BISSAU


O MEU ÚLTIMO DIA NA GUINÉ


Albano Mendes de Matos


Foi um momento emocionante o meu último dia na Guiné-Bissau, em 13 de Outubro de 1974.

O pessoal que restava do meu serviço, Contabilidade, saiu para o aeroporto de Bissalanca, logo pela manhã, como quase todos os militares que ainda lá se encontravam. Levaram rações de combate para as refeições. Creio que com receio de algum acontecimento. Permaneci no local do meu serviço, para entregar as instalações e materiais às tropas do PAIGC, com guias de entrega e tudo, como estava combinado. Fiquei apenas com um jipe e um condutor, militar português, para me transportar do Quartel-General de Santa Luzia para Bissau e, depois, para o aeroporto.

Cerca das 11 horas, chegaram 6 negros, escoltados por uma secção das tropas do PAIGC, a pedirem os vencimentos a que tinham direito, porque tinham sido soldados portugueses. Tinham direito aos vencimentos de Abril a Dezembro de 1974, como fora acordado. Os ex-soldados portugueses tinham fugido para o Senegal após o 25 de Abril, porque tinham receio que os prendessem ou fuzilassem.

As famílias avisaram esses ex-soldados para se deslocarem a Bissau, para exigirem o pagamento. Eu tinha pedido à Emissora da Guiné para avisar todas as pessoas, militares e civis, e as empresas que tivessem a receber alguma coisa do Exército Português, que o comunicassem até, creio, ao dia 10 de Outubro [de 1974].

Interessante foi o caso de uma Casa de Instrumentos Musicais pedir o pagamento de 6 clarins que tinham sido fornecidos ao Comando Militar da Guiné... em 1940.

Disse aos ex-soldados que já não havia dinheiro e o tesoureiro já se encontrava em Portugal. Responderam-me que eu queria era ir para Portugal gozar com o dinheiro deles. Levei-os à tesouraria e mostrei-lhes os cofres abertos, sem dinheiro e disse-lhes que poderia promover o envio do dinheiro, quando chegasse a Portugal, para a Embaixada na Guiné. Tomei nota dos números, nomes e da Unidade a que pertenceram. Entreguei-lhes uma declaração assinada por mim e pelo comandante da secção militar do PAIGC. Em Novembro/Dezembro enviei o dinheiro devido ao 6 militares, não tendo conhecimento se o receberam.

Chegadas as 13 horas, sem que tivesse aparecido qualquer elemento do PAIGC, nem o meu condutor, como lhe havia dito, para me conduzir a casa de um locutor da Emissora, português que ficou na Guiné, para almoçar. Com uma pequena mala, resolvi ir, a pé, para o forte da Amura, junto ao Cais do Pindjiguiti, onde tinha a minha bagagem.

Quando, na estrada, me preparava para caminhar, surgiu um jipe com um militar do PAIGC, mulato, de meia-idade, que me disse:

- Camarada, para onde vai?

Contei-lhe o sucedido e logo se prontificou levar-me à Amura, mas que lhe ensinasse o caminho, porque só tinha ido a Bissau, durante a guerrilha, uma vez, de noite, ao cinema na UDIB (União Desportiva Internacional de Bissau). Perguntando-lhe quem era, respondeu que era um comandante do Exército do PAIGC, que fora ver as instalações do Comando do Quartel-General, onde se iria instalar, ainda nesse dia.

Conduziu-me no jipe não à Amura, mas a um restaurante de um primo do meu condutor, português a quem o Governo da Guiné pediu para não sair, porque era o chefe da fábrica de descasque de arroz, situada numa ilhota, no rio Geba, em frente de Bissau.

Lá encontrei o meu condutor com uma grande bebedeira, não podendo conduzir o jipe. Disse-lhe que não se embebedasse mais, porque às 11 horas da noite tinha que estar junto do jipe, em frente do restaurante do primo, para irmos para o aeroporto.

Almocei e jantei na casa do referido locutor e andei pelas ruas e pelos bares de Bissau. Só encontrava guineenses que me cumprimentavam e desejavam boa viagem e muita sorte.

Dei por mim a olhar para as memórias portuguesas que ficavam por aquelas paragens: edifícios, estátuas, toponímia. E a recordar a história que me tinham ensinado, com navegadores, guerreiros, missionários e pacificadores.Imaginei os primeiros portugueses a chegar àquelas terras. E eu, agora, o último a passear pelas ruas de Bissau, no fim do Império.

Estavam lá mais portugueses, o Governador e alguns militares, mas não saíam à rua. Às 23 horas, foram sob escolta para o aeroporto. Também estava um navio com um Batalhão nas proximidades do porto, para zarpar quando o último avião da Guiné estivesse no ar, para a última viagem aérea de uma parte do Império.

Um pouco depois das 11 horas da noite, dirigi-me para o jipe. O condutor estava melhor da bebedeira. Com ele estava o primo. Alguns negros param a olhar para nós. Aproximaram-se. O jipe arrancou. Os guineenses ficaram a acenar, de braços levantados. Descemos pela avenida principal, subimos pelo lado do campo de futebol.

Sentia uma sensação estranha. Já na estrada do aeroporto, olhei para trás. Duas lágrimas saltaram-me dos olhos, recordando o sangue português derramado naquelas paragens. Era estrangeiro numa nova nação.

Já perto do aeroporto, o condutor perguntou-me:

- Meu tenente, onde deixo o jipe?

- Atira-o para uma barreira!

Parámos à entrada do parque do aeroporto. Desci com a pequena mala. O condutor colocou uma sacola no chão, subiu para o jipe e conduziu-o até uma pequena ladeira, ao lado da estrada, um pouco antes do aeroporto, para onde o encaminhou com um pequeno empurrão.

No aeroporto, para entrarem no último avião da Guiné, estavam o Governador, o Comandante Militar, alguns militares coadjuvantes, oficiais, sargentos e meia dúzia de soldados.

Para apresentarem cumprimentos de despedida, chegaram alguns chefes militares do Exército do PAIGC e o Presidente da Câmara Municipal de Bissau.

Era o fim da colónia ou província portuguesa da Guiné, já independente desde o mês de Agosto.