Pedra VerdePreparação do obus 8,8 cm para tiro.Militares artilheiros, os Peras, do 3º Pelotão da Bateria de Artilharia 147, em Quissacala, junto da Pedra Verde Ambulância e jipe, nas imediações da Pedra Verde, para evacuação de feridos.
Na manhã do dia 28 de Julho de 1961, travou-se uma das mais longas batalhas da da Guerra em Angola. A Operação, envolvendo um Pelotão Reforçado de Infantaria de Luanda, o Esquadrão de Cavalaria 149, a 4ª Companhia de Caçadores Especiais e o 3º Pelotão da Bateria de Artilharia 147, com armas ligeiras, pesadas e obuses, prolongou-se por mais de seis intermináveis horas. O palco ou o campo de batalha situava-se nas imediações da Pedra Verde, morro pedregoso, denominado Camucugonlo, com incidência na Picada da Catuta ou Senvo, Região dos Dembos, a Nordeste de Úcua, onde se acoitavam os guerrilheiros angolanos.
Na altura, tinha na ideia fazer reportagens escritas e fotográficas. As fotografias só foram tiradas a posteriori, mas o registo visual, ficou indelével na memória.
Registo parcial das minhas memórias nas acções na Pedra Verde.
A Operação de progressão foi suspensa. Havia que trazer os mortos e os feridos. A decisão foi tomada, sem demoras. Segundos podem salvar vidas. Indecisões podem causar tragédias.
O sargento enfermeiro e os maqueiros tinham que ir, por dever de especialidade. Outros militares foram voluntários. A solidariedade e a fraternidade acima de tudo. A guerra une os homens, fortifica o sentido de irmandade. O dever de assistir o irmão em sofrimento surge como valor supremo. O altruísmo, sempre como primeiro valor, nos transes difíceis.
Um condutor artilheiro, homem tripeiro, cara picada pelas bexigas, correu para o jipão. O soldado Elias arrumou duas macas na viatura e o sargento enfermeiro mandou seguir, com duas bolsas de socorrista. O jipão entrou na picada, curvou para a esquerda do monte Senvo e desapareceu engolido pelos capins.
O tenente-coronel comandante, sempre penteado para a guerra, binoculava os terrenos avante, o morro Senvo salpicado de arbustos, a clareira aberta de luz, mas fechada de segredos, a mata a ondear para os horizontes do rio Dange, o morro Camucongolo ou Pedra Verde a namorar com as antropomórficas Lemba-Lemba, elevações semelhantes a duas mamas, cristas elevadas ao rés dos céus e dos deuses. Sempre de pé, o comandante afirmava aparente serenidade, perante o desespero das horas, na corrida dos ponteiros, e a batalha para ganhar. Em presença, as memórias loucas de Alcácer Quibir ou o Quinto Império, na utopia de Vieira, a esfumar-se em manhã de névoas. Uma guitarra a trinar lamentações. O fado de ser português aventureiro e sonhador. Fernão Mendes Pinto, sem lei nem paz, da deriva dos sertões. O mundo disperso, feito de esperanças e de saudades. O nevoeiro da manhã trágica era a certeza a entrar nas realidades pátrias. Ou Pessoa na hora absurda e adversa da com a Mensagem premonitória.
O jipão artilheiro parou no local de segurança, onde o capitão Caçador Especial coordenava a condução das operações, no melhor dos mundos possíveis. A tragédia de Unamuno ou o optimismo de Voltaire, para além das crenças em milagres e das protecções das santas e dos santos, no rasto das divindades primitivas e das mentalidades arcaicas. As pressas na resolução da situação, que as fianças na Virgem não são tomadas em tempo de guerra.
O sargento enfermeiro, ovarense dos três costados, já um pouco cacimbado, dado à poesia popular, cantava, em quadras redondas, as saudades da mulher, do quintal, das couves e das alfaces repolhudas, cerceadas por lesmas e caracóis, tomou conta da situação e dos esforços a empreender. Lado a lado com o soldado Elias ou Golias, ambos arrastavam uma maca, aproveitando o sulco de uma pequena ravina que corria, pela direita, na direcção dos feridos e dos dois socorristas. Rastejavam puxando as macas, palmo a palmo, que, para maiores facilidades, foram atadas a um pé. Improvisação que não consta dos manuais da evacuação bélica. As balas picavam nas proximidades, num plano mais elevado. O mais pequeno descuido seria a morte. Sempre rastejando, rentes ao solo, o sargento e o soldado Elias ou Golias chegaram junto do alferes Pombinho que, deitado de costas, gemia dolorosamente, contorcendo-se em angústias de morte. O peito da camisa em postas de sangue e de poeira, com as negras varejeiras sugando os coágulos, numa avidez estonteante, sempre a saltitarem, com zumbidos de asas, em revoadas enervantes. Os olhos do oficial revirados para o branco, o rosto pálido, os membros em tremuras palúdicas. Um fiozito de sangue a escorrer do nariz e a cair na boca, onde borbulhava uma respiração ofegante. O alferes angolano, tomado de pavor e de angústia, no jardim de Getsêmani, não de olivas, mas de cafezeiros, justiçado através do sacrifício, sangrava no calvário da Pidada da Catuta. Com as forças que ainda lhe restavam, gritava:
- Matem-me!... Matem-me!... Por favor!...
Em esforços de raiva, o sargento enfermeiro e o soldado Elias ou Golias ajeitaram carinhosamente o corpo do alferes na maca e ajustaram levemente as cintas imobilizadoras. Entre a vida e a morte, no jogo da guerra, nos transes da raiva e do desespero. Na miséria dos homens que mandavam na guerra, para lá da protecção e dos desígnios dos deuses, que a Pátria invocava, para justificar a sua acção civilizadora, na catequização dos negros, apresentando-os como crianças adultas, de pensamento e espírito pré-lógicos, carentes da ensinança lusíada.
Chegaram ao corpo de um soldado negro, que apanhara uma rajada pelas pernas, esmigalhando-lhe os ossos. Olhos muito abertos e uns ligeiros suspiros nos lábios sangrando poeiras. Os calções azuis ensanguentados. E sempre as moscas varejando. O preço de ser português, com o nome registado nos papéis do Imposto de Palhota e nos cadernos do trabalho voluntário para o Estado, ou a dívida para com uma Pátria longínqua, para lá dos mares e dos céus. Arrumaram o ferido na maca. Outros feridos esperavam mão salvadora, mão que os libertasse daquela descida aos infernos da guerra, na Picada da Catuta, na picada da morte, arvorada em visão dantesca e demoníaca, onde os clamores eram uivos de raiva. Que os mortos seriam retirados depois.
Os Caçadores Especiais sempre a fazerem fogo de protecção, varriam a saída da mata, que era zona de morte, cobrindo a acção de salvamento dos feridos e da recolha dos mortos.
Como transportar as macas com os corpos feridos?
A pulso, sem cobertura natural do terreno, era impossível sem serem atingidos pelos tiros dos guerrilheiros. Puxar pelas macas pesadas, a rastejar, era penoso e difícil. O sargento enfermeiro mandou um maqueiro comunicar ao capitão Caçador Especial que precisava de cordas para retirar os feridos. O capitão mandou uma estafeta à tropa da retaguarda a pedir as cordas. Por sorte, a palamenta dos obuses estava dotada de cordas com dez metros. Logo a estafeta, qual Mercúrio de pés alados, no jipão da Artilharia, correu com as cordas misericordiosas através do Monte Senvo ou Olimpo, na Maratona trágica da Catuta.
O sargento enfermeiro rastejou para a maca do alferes. O soldado Elias ou Golias rastejou para a outra maca. Ataram as cordas às macas, com firmeza, de modo a poderem ser puxadas. Afastaram-se uns metros e experimentaram. As macas deslizaram sem grandes dificuldades. Rastejaram e esticaram as cordas no seu comprimento. O sargento enfermeiro, o soldado Elias ou Golias e os dois soldados maqueiros puxaram pelas cordas. As macas, empeçando nos caules do capim e nas saliências do solo, venceram as distâncias para a segurança, para a libertação. Chegou primeiro a maca com o alferes, que logo foi levada para o jipão da Artilharia, que de imediato arrancou para a estrada. Depois, a maca com o soldado negro, que foi levado, em braços, para a retaguarda, até ao regresso do jipão. O soldado Elias ou Golias rastejou, com a maca, sempre praguejando, “Filhos duma puta! Filhos duma puta!”, para junto do outro soldado negro, ferido numa anca e um tiro no pescoço. Colocou-o na maca e procedeu de igual modo, até o ferido estar em lugar seguro e logo foi transportado para a zona de reunião, determinada pelo capitão Caçador Especial.
O terceiro ferido, um soldado negro, já não precisou de maca. A Parca da morte cortara-lhe o fio da vida, derramando-lhe o sangue no campo da honra, na Picada da Catuta. Honra, palavras eivada de crença nacionalista, com sentido simbólico na ara dos sacrifícios patrióticos, de negros e de brancos, imolados em nome de uma civilização, no Altar da Pátria.
- Matem-me!... Matem-me!... Por favor… matem-me!... - gritava o alferes Pom-binho, rasgando a camisa, com mãos agitadas por excessos de dor e de rancor.
O alferes miliciano médico preparou-o para a evacuação, adaptando compressas nas feridas, mumificando-lhe o tronco com algodão e ligaduras. Injectado com morfina, com o rosto lívido, fechado numa máscara de dor, foi acomodado na maca de campanha. Colocada a maca num jipe, improvisado de ambulância, foi levado para Úcua, onde uma avioneta o esperava, numa pista de aterragem improvisada numa plantação de sisal, para o transportar para o Hospital Militar, acompanhado por uma enfermeira paraquedista, que fazia o seu baptismo de guerra, na evacuação de feridos em combate.
- Matem-me!... Matem-me!... - foram os últimos gritos do alferes Pombinho, abafados pelo roncar do jipe-ambulância.
Na berma da estrada, ficaram, enrolados pelo vento, os farrapos ensanguentados da camisa azul esbranquiçado do alferes, talvez o alvo que o vitimou.
O jipão artilheiro, viatura de ligação entre a frente de batalha e a retaguarda, logo chegou com os dois soldados negros feridos. O soldado Elias ou Golias saltou do jipão e, correndo para o alferes artilheiro, gritou, meio perdido do juízo:
- Meu alferes!... Aquilo é uma assombração!...
- Calma, Elias!... – disse o alferes.
- Uma assombração, meu alferes!... É de um gajo dar em doido!...
Depois de um comovido silêncio, o soldado continuou:
- Há lá mortos estendidos pelo capim, crivados de balas, por aqueles filhos de uma puta! Precisam é de bordoada nos cornos! Grandessíssimos cabrões!
- Senta-te um pouco. Acalma-te. Que não há-de ser nada.
- Não há-de ser nada?... Aquilo?...
- É da guerra, Elias!
- Uma guerra de merda e de mortandade é o que é!...
Observados pelo médico e tratados pelos maqueiros, de imediato, os feridos seguiram para Úcua, numa GMC improvisada de ambulância. Feridos, libertaram-se do inferno e da morte.
- As misérias da guerra são os mortos, os feridos, os estropiados! - disse o médico miliciano para o tenente-coronel comandante.
- Não fomos nós que a inventámos! É tão velha como o homem! - comentou o tenente-coronel comandante, passando a mão pelo risco do penteado.
Na frente de batalha, parecia agora haver alguma acalmia. Os disparos eram espaçados. Ouvia-se um ou outro metralhar, ao longe, para os lados da Pedra Verde. Ou os guerrilheiros estavam a retirar ou eram disparos ardilosos, simulando a retirada.
- Os gajos não são matumbos, não! – comentou o alferes artilheiro para o comandante, que lhe fora ordenar para fazer mais umas sessões de tiro de flagelação sobre a picada da Catuta.