domingo, 2 de outubro de 2011

CAMUCONGOLO

Os artilheiros preparam os obuses 8,8 cm para sessões de tiro; ao fundo à direita, a Pedra Verde.



Os militares de uma companhia de Infantaria, em acção para conquista da Pedra Verde, Camucongolo na toponímia cartográfica, pernoitam num armazém da Roça Quibaba, a cerca de pouco mais de uma légua do objectivo.


No negrume da noite, dançam os fantasmas que cada mente concebe. É no sossego aparente, necessário para o restabelecimento físico do corpo e para o relaxamento dos nervos, que surgem alguns pesadelos sobre contactos com os «turras», com gritos de desespero em sonhadas emboscadas.

Ao dealbar da manhã, os militares esfregaram os olhos, ajeitaram os bornais, mastigaram pão com marmelada, verificaram os carregadores e outros pertences, e entraram no carreiro da mata que leva à picada para o rio Dange e Nambuangongo, seguindo o itinerário rascunhado em papel vegetal, no sentido da Pedra Verde. Caminhando sob as frondosas árvores, passo a passo, encontram diversos trilhos, que ora se cruzam, ora divergem ou terminam em ligeiras veredas. São apoiados da Artilharia instalada na Roça Quibaba: seis peças 7,5 cm e dois obuses 8,8 cm, que durante a noite flagelaram, com concentrações de tiros, algumas sanzalas e zonas adjacentes à Pedra Verde.

- Não devem andar longe – disse, em surdina, um furriel, apontando ramos partidos de fresco.

Perante o emaranhado de trilhos e sem visibilidade, os militares sentem-se perdidos do itinerário. Voltam ao local onde já tinham passado. O capitão pede um tiro de artilharia sobre a Pedra Verde para se localizar no terreno. Orientados, prosseguem a marcha. Poucas falas. Apenas gestos. Irmanados num forte espírito de corpo.

Ao subirem um cerro, despido de árvores robustas, avistam um pedaço do morro Camucongolo. Uma bandeira vermelha drapeja no cume.

- Olha o descaramento dos gajos! – disse um furriel.

- É da República de Nambuangongo, que eles apregoam! – comentou um alferes, mirando pelos binóculos.


Depois de um ligeiro descanso, é reiniciada a marcha, sob os ardores do sol, que já estava alto. Os ânimos aquecem, as vontades firmes e indomáveis, como nos momentos das grandes decisões. Os rostos cerrados, nas cautelas e nas preocupações, que os indícios são certezas de que os guerrilheiros andam pelas redondezas. O silêncio apenas cortado pelo cantar de pássaros, voando de ramo em ramo, nas suas naturais liberdades. A Natureza vibrando de vida. A selva na sua grandiosidade, as plantas tocando as ramagens, enlaçadas em protecção mútua, a coarem os raios do sol. Depois, num plaino, os arbustos e os capinzais substituem a selva.


Subitamente, uma descarga de fogo atroa nos ares. Colocados instintivamente em defesa, um soldado fica de bruços sobre a espingarda. Era o transmontano Valdanta ferido por uma bala. Um tiro certeiro. Como num jogo de sorte de azar.

- Calma! Aguentar! Vamos a eles! – alguém gritou.

Quebrado o ímpeto inicial dos guerrilheiros, os soldados metropolitanos assestam as armas sobre as orlas do plaino. Disparam continuamente. Há ordem para evitar consumos desnecessários de munições. Os «turras» respondem com vigor, mas, a pouco e pouco, vão reduzindo o fogo até ficarem silenciados. Um caminho e diversos trilhos cortam o plaino. A pedido, a Artilharia faz fogo para a frente das tropas emboscadas. Como em guerras clássicas.

Há soldados que gritam e praguejam clamando vingança. Outros não conseguem evitar o nervosismo e continuam a disparar. O comandante determina uma paragem na progressão para ser evacuado o soldado Valdanta ferido.

- «Turras» dum catano! – grita um soldado patrício do Valdanta, com o rosto congestionado, chorando.

A companhia reinicia a caminhada para a Pedra Verde. Agora, numa linha de alturas, na direcção do rochedo. Para os lados, a perder-se nos horizontes, um mar de verdura. A sueste, erguem-se os morros «Lemba-Lemba», como dois descomunais seios.

- Os gajos devem ter cavado com os tiros da Artilharia, que eles têm medo do «pum cá» e «pum lá» – disse um furriel.

O sol a pino, queima. Os suores afloram. Logo evaporam com uma sensação de frescura, na sombra das árvores. Uma avioneta sobrevoa os militares, faz círculos sobre a Pedra Verde. Depois o silêncio. A Natureza adormecida, na modorra da tarde.



Dezoito de Setembro de 1961.


Data significativa da Guerra Colonial. Quebrava-se o mito da Pedra Verde.

A companhia de infantaria ocupa a base nascente do moro Camucongolo ou Pedra Verde. Os militares de uma secção iniciam, vagarosamente, a subida para o penhasco. Os declives e a vegetação complicam a acção. Chegados ao cume, retiram a bandeira vermelha, que diziam ser do movimento independentista UPA (União dos Povos de Angola) e, sem as solenidades apropriadas, sem fanfarras, nem clarins, içam, num pau, a servir de mastro, a Bandeira Nacional.

Os militares, perfilados, afogueados pelo calor, as fardas empapadas por suores e pó, com algumas lágrimas a aflorar, olham a Bandeira.

Em baixo, as armas disparam salvas.


Ao ouvir as salvas e ter conhecimento da tomada da Pedra Verde, o capitão comandante da Bateria de 7,5 mandou carregar as peças apenas com cargas, para fazer tiros de salva a comemorar o acontecimento. Carregadas e prontas as peças, mandou fogo pela direita. Seis tiros, um de cada vez. Os estampidos das explosões dos primeiros tiros apenas se ouviram nas imediações das peças.

Perante o facto, o capitão gritou:

- Parem, parem com isso, que só faz paaff… paaff… paaff…; não faz pum!

O capitão artilheiro dos obuses 8,8 cm, para mofar do camarada ou das peças 7,5 cm gritou:

- Ó capitão, as tuas peças são maricas! Só fazem paaff… paaff… paaff… Pum é para o 8,8!

Os militares dos obuses 8,8 cm não contiveram uma risada geral. Os militares das 7,5 cm ficaram em silêncio.


A Pedra Verde estava tomada.




O Pelotão artilheiro obuses 8,8 cm retira da Pedra Verde.





Sob forte cacimba, o pelotão artilheiro de obuses 8,8 cm retira da Pedra Verde. Alguns militares protegem-se com capas.




Um militar do pelotão artilheiro junto de uma cubata destruída; ao fundo, a Pedra Verde.



Um obus 8,8 cm no momento do tiro.


Obus 8,8 cm no momento do tiro.




Militares artilheiros na mata, próximo da Pedra Verde.



Militares artilheiros nas proximidades da Pedra Verde, que se vê em segundo plano.


Uma companhia de infantaria entra na mata, a caminho da Pedra Verde.




sábado, 7 de fevereiro de 2009

A GUERRA COLONIAL EM ANGOLA






SANTA BÁRBARA NA MATA DOS DEMBOS


A Bateria de Artilharia 147, fora instalada na Roça Bom Jesus, a sul de Pango Aluquém, nos Dembos, para efectuar tiros de flagelação sobre itinerários e possíveis redutos de acantonamento de guerrilheiros, e protecção da Infantaria, como em guerra clássica, que progredia para sul.
Ao despontar do dia 4 de Dezembro de 1961, dia de Santa Bárbara, padroeira dos artilheiros, não havia qualquer programação bélica. Mas Santa Bárbara tinha que ser lembrada. Nada melhor do que fazer uns tiros de em sua honra. Carregado o obus, o comandante grita:
- Tiro!!!
O servente manobrador da culatra acciona o dispositivo e troam dois estrondos quase simultâneos. O rebentamento da carga de propulsão da granada e o rebentamento, dentro ou à boca do tubo, da própria granada. Devido à pressão dos gases, a manga do tubo do obus partiu-se.
Após grande perturbação e expectativa, verificou-se que apenas um militar fora atingido com um pequeno estilhaço na cabeça, logo evacuado para Luanda.
Castigo de Santa Bárbara? Especulação de crentes. Obra do acaso? Talvez certeza de não crentes.
A meio da manhã, chegou um Capelão que celebrou Missa, com caixas de munições a servirem de altar, e a falou das virtudes da mártir Santa Bárbara .
Santa Bárbara foi uma virgem, muito bela, dos inícios do século IV. Por ser cristã, o próprio pai entregou-a aos romanos. Após vários tormentos, foi decapitada. Pouco depois do seu martírio, o seu pai foi fulminado por um raio. É advogada nas trovoadas e padroeira dos que utilizam explosivos (artilheiros, mineiros, fogueteiros, etc.).
Albano Mendes de Matos

A manga estilhaçada do obus, no dia 4 de Dezembro de 1961, na Roça Bom Jesus, em Angola.


Celebração da Missa em honra de Santa Bárbara, na Roça Bom Jesus, no dia 4 de Dezembro de 1961, com o altar armado sobre caixas de munições. À direita, o soldado sacristão com uma vela.



A GUERRA COLONIAL EM ANGOLA


UIVOS E CLAMORES NAS PICADAS DE ANGOLA

A coluna de socorro e reabastecimento progredia em marcha lenta. O perigo podia estar perto. Acutilante e atenta a observação. O terreno pouco acidentado. Subiam lombas, passavam plainos, atravessavam aterros e trincheiras, sob a impressionante cúpula das ramagens. Adiante, a tropa apeada farejando as bermas. Atrás, na expectativa, as viaturas de reabastecimento e o pessoal de escolta. O sargento Norberto e o soldado Elias ou Golias iam na segunda viatura. A tropa em perfeita coordenação. A missão era humanitária. Socorrer irmãos de armas. A tensão nervosa aumentava com o passar dos minutos. As espingardas tremiam. Os olhos vigiavam. Os medos apertavam as almas.

- Põe-te a pau, Elias, que estamos perto! - ciciou o sargento Norberto.

- Olho vivo e dedo ligeiro é o preciso, meu sargento! - respondeu o soldado, olhando em redor.

- Tanto silêncio, está a cheirar-me a esturro - disse o sargento.

- Que se cheguem, que levam p’ra carvão! - respondeu Elias ou Golias.

- Pode ser que não seja nada!

- A guerra é para os homens, meu sargento! - gracejou Elias ou Golias.

- Já há mulheres, Elias!

- São umas marafonas, que andam nas avionetas, de rata arejada. Não põem o traseiro nas picadas. Isso põem elas!...

- Acompanham os feridos, são muito úteis, no lugar dos homens. Deixam estes para a guerra. Quem manda, manda bem.

- E acompanham os padres, na boa-vai-ela! - disse rindo o soldado Elias ou Golias.

Nos musseques da cintura de Luanda, a pedido dos capelães, as enfermeiras pára-quedistas tinham uma missão sacramental. Amadrinhavam prontamente centenas de negrinhas e de negrinhos, arregimentados inocentemente para a religião oficial ou oficializada. Um punhado de água benta e a cantata de umas jaculatórias, com um pouco de sal, tiravam-lhes as marcas tradicionais do animismo, que a maior parte dos pais professava. Entravam na religião de Cristo ao som das metralhadoras, dos morteiros e dos canhões. Assim ficavam com religião de gente. Dizia-se. Gente era o branco, mesmo que analfabeto. Ignorante, abaixo de cão, era o preto, por sorte ou azar de ser negro.

Passavam numa ligeira trincheira com arbustos na crista. O sargento Norberto levantou-se e coçou as virilhas. Inesperadamente: um tiro. O sargento tombou de escantilhão sobre o soldado Elias ou Golias, que tentou ampará-lo, ao mesmo tempo que lançou um urro de raiva. Outro tiro e logo outro. Um cabo gritou estou morto e tombou pela parte de trás da viatura. O condutor, com grande sangue frio avançou uns metros, para tentar fugir da zona de morte. Os soldados saltaram da viatura, abrigaram-se nela e dispararam para todos os lados. O corpo do cabo ficou estendido na picada. Sobre a viatura, picou uma rajada. Um cabo tinha uma granada defensiva à cintura. As mãos tremiam-lhe. Num instante decisivo, arrancou a granada, tirou-lhe a cavilha e lançou-a por cima da viatura, para lá da crista da trincheira. Logo a explosão. Os militares das outras viaturas, fora da trincheira, dispararam desordenadamente para o terreno em declive, pejado de árvores. Não havia possibilidades de fazer fogo de morteiro, nem de lança-foguetes. Foram colhidos de surpresa, num local difícil. A guerrilha não escolhia horas para matar. Mas escolhia terrenos propícios, vantajosos para as emboscadas. Uma guerra em que a tropa, dita convencional, para dar caça ao inimigo, nunca sabia onde ele podia surgir. Era terrível aquela guerra.

Os guerrilheiros deixaram de fazer fogo. A tropa ia disparando por todo o terreno. Ninguém conseguia retirar o dedo do gatilho. Metro a metro, alguns militares rastejaram para as cristas da trincheira. Abrigavam-se, de árvore em árvore, sempre a fazer fogo. Ou matar, ou morrer.

No cume da trincheira, um furriel olhou para baixo e disparou a pistola-metralhadora, numa onda de raiva, para a esquerda e para a direita. Despejou, num ímpeto, cinco carregadores, varrendo o terreno em meia-lua. Não houve qualquer resposta dos guerrilheiros.

Os soldados começaram a falar. Refeitos do susto, tentavam saber o que tinha acontecido.

- Já deram com os calcanhares no cu - sentenciou um.

- Cortaram-nas, os filhos duma puta! - disse outro.

O soldado Elias ou Golias saltou para a viatura e gritou, chorando:

- O nosso sargento Norberto está morto!... Morto!...

A cara do sargento era uma máscara de sangue. A cabeça rasgada pela metralha de uma canhangulada, atirada à queima-roupa. Um buraco no osso frontal, com derrame de massa encefálica, o nariz desfeito, um olho vazado. O sangue escorrendo. Voluntário para a guerra. Voluntário para a morte. Humanista e altruísta caiu sem glória, martirizado no sacrifício total. Cordeiro, de sorte madrasta, imolado no altar da Pátria Lusíada. Sem Deus, nem anjo da guarda. No cumprimento do dever, na hora trágica e absurda da guerra, que ia ceifando a vida a muitos soldados portugueses.

De costas, caído na picada, olhos muito abertos, na imobilidade da morte, estava o cabo atirador Vasconcelos, atingido por três balas. Um tiro entre os olhos e dois no peito levaram-no para a outra vida. A boca muito aberta, como que rindo. Derradeira expressão de uma vida, que a Pátria imolou.

Amainada a situação, o alferes comandante da coluna correu a perguntar se mais alguém foi atingido. Só mais três soldados atiradores tinham sido feridos. Um com um tiro num braço e dois com tiros nas pernas, que o enfermeiro tratou. Foi apenas uma canhangulada. E fez efeito. A que levou o sargento Norberto. Fecharam-se os seus livros, cercearam os seus saberes, ludibriaram as suas ideias e ficaram órfãos os seus filhos. Viúva a sua mulher, na riqueza de uma pensão de sangue. Na dor e na glória póstuma de uma condecoração, no patético cerimonial do Terreiro do Paço, vestido de luto, no dia maior da Portugalidade. O Dia da Raça. Que raça? Preta ou branca? E os mulatos? Perguntar-se-ia em Luanda, especialmente na cidade da areia, de casotas de pau a pique, vasculhadas por polícias e por patrulhamentos militares, na hora do desagravo e da vingança. A guerra é demolidora. Num minuto tudo se altera. Talvez a geração órfã, filha dos combatentes em África, gerada nos últimos ardores da despedida, ou nascida antes da guerrilha, não compreenda esta guerra, que lhe roubou os pais que não conheceram.

Uivavam os ventos nas espessuras das florestas virgens. Gritavam os macacos, as hienas, os chacais e os abutres, ao rés das tropas metropolitanas, instaladas ou acantonadas em tendas, barracas, currais e galinheiros. Gritavam ou uivavam as matilhas famintas de mabecos, procurando as canelas dos patrões. E rugiam os leões, reis das savanas, ao troar das morteiradas. E gritavam os soldados, quando o aço ou o ferro lhes penetravam nas carnes e nos ossos, desfazendo braços, eliminando pernas, lacerando pés e testículos. E gritavam, contra as muletas, os amputados das pernas. E gritavam os que não podiam rastejar, amarrados à velocidade das cadeiras de rodas. E gritavam os militares que não tinham mãos para agarrar nos sexos. Mijavam pelas mãos dos outros. E gritavam os soldados que nem sexos tinham. Cerceados rentes pela metralha. Antes a morte. Diziam. A tragédia podia chegar a todos. Um dia era um, outro dia era o outro. E havia os soldados que endoideciam, gritando frases desconexas, perdidos da memória, das realidades e da vida. E havia outros gritos. Gritos sentidos para dentro, com angústias metafísicas de honra. O grito dos corneados. Avisados por amigos ou pela família. As guerras são palcos para todas as tragédias. E havia uivos nas picadas da Angola.

ALBANO MENDES DE MATOS


Bateria de Artilharia 147 caminha para o Norte de Angola, 1961.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

A GUERRA COLONIAL EM ANGOLA



A MORTE DO ALFERES


Era a hora do regresso da escolta que fazia protecção às colunas civis, que transportavam mercadorias, do norte para Luanda e da capital para o norte. A vida económica não podia parar. Estagnar era morrer, era abandonar os braços ao infortúnio. A tropa protegia, a tropa lutava por Angola, a tropa defendia os fazendeiros e os patrões. A tropa morria, por uma coisa que diziam ser a Pátria ou pela colheita de uns sacos de café. Guerra trágica e madrasta para muitos. Benfeitora para outros, acumulando-lhes os lucros. Os soldados morriam. Com honra. No caminho da eternidade. Encomendados pelo piedoso cantochão clerical. Depois, o silêncio. O silêncio na dor das famílias. Ditosos filhos. Tristes mães. Sangue derramado pelo outro, pelo colonialista, pelo irmão negro ou branco, que o destino pôs na guerra, ou o infortúnio de ter nascido uma vintena de anos antes. A morte na mira das armas, a vida na incerteza das horas. A guerra. Só a guerra na abertura larvar dos dias. A terra e a família no sobressalto das angústias, na paragem das horas e no receio das notícias. Perdidas no nevoeiro das distâncias e das memórias, as raivas e os uivos projectados no que restava das almas.


A coluna ia partir de Sassa para Beira Baixa, por caminhos de Quicabo.

- Não!... Vou antes no jipão artilheiro, que nunca foi atacado, eles têm medo da artilharia - disse o alferes, rindo, e tomou lugar num dos bancos da caixa da carga, empunhando uma pistola-metralhadora, onde ajustou um carregador.

- Ponha-se a pau, que eles andam por aí, meu alferes!... - disse-lhe o artilheiro Elias ou Golias, aconchegando-se para o lado, para o oficial ir mais acomodado.

- Agora, que tenho cá a minha cara-metade, apertam-me mais as ideias sobre tudo isto. Parece-me que estou a ter mais receio - retorquiu o oficial.

- Aprecate-se, meu alferes, que isto é uma roleta, que Deus ou lá o que é faz rodar, e a vida pode ser curta - respondeu o Elias ou Golias, torcendo os lábios e continuou - Uma boa mirada de turra e um aperto no gatilho fazem lerpar um gajo, num relâmpago, nesta terra que dizem ser nossa, isto é que é uma verdade - e passou a mão pela arma, gesto mágico ou carícia.

- É uma verdade, amigos!... - disse o alferes Meneses, ajustando a correia do capacete.


Sete Curvas!

Um só tiro, no amplo silêncio, para além do roncar dos motores. Um tiro certeiro e a morte. A tragédia do militar abatido por uma mirada traiçoeira. Uma espera para matar, a coberto da mata virgem, de mil segredos, de onde se ausentou a presença de Deus, talvez protegendo o guerrilheiro, caído nas suas graças, cerceando a dilatação da fé missionária, que a estrutura imperial teimava em proclamar. A Pátria estava a esmorecer, chamas amortecidas e diluídas nas realidades da guerrilha. Postas em causa as razões da lusitanidade nos destinos de Angola. Aventuras desfeitas em memórias. E febres angustiadas atormentando os espíritos. Colonos patriarcais analfabetos perdidos pelos sertões. Pasmados e incrédulos, levados pela voragem dos tempos. Amantes de negras, criadores de mulatagem, no cio dos dias, na vertigem das horas e nas ânsias dos dinheiros, sofrendo a angústia das horas incertas da guerra.

A bala trespassou o coração do alferes Meneses. Perfurou a fotografia do cartão de identidade, que o militar trazia no bolso da camisa. Cortou a efígie e atravessou o tórax. O sangue a borbulhar. A vida desfeita sem um grito. Na hora trágica, as parcas quebraram-lhe os fios invisíveis da vida. O sacrifício do sangue ou o óbolo em nome da Pátria. A Pátria honrada por ter tais filhos. Merecedora dos mortos. O alferes na barca de Caronte, a caminho do imaginário Paraíso. A morte inocente, nos altares da Pátria, não pode ser lambida pelas sagas infernais. A boca aberta, os lábios suspensos pelo último rasgo de ar. A luz quebrou-se-lhe nos olhos arregalados. A escuridão cerrou-lhe as pupilas, rasgou-lhe as retinas. As pálpebras pararam de terror, para lá do infinito. Nos longes de Deus, nas mãos do diabo. Apenas nada.

Estampido sentido e logo a metralha infernal varreu as imediações das bermas da estrada. Depois, o voo para o chão, para a terra protectora, sorvendo os aromas acres da guerra. O tiroteio nas margens do capim, na foz da vida, rente à morte. Salivas e espumas amalgamadas no pó barrento, aos cantos da boca. Dentes cerrados de raiva. Pingos de urinas incontidas, na junção das pernas, flatos sumarentos, nas tremuras das terminações corporais, e a histeria gritante de alguns soldados bêbedos, soluçando arrotos de cervejas mal bebidas, inebriados pelas cóleras da guerra, perdidos na imensidão da Pátria. Pátria ou Mátria semeada de violências, de picadas poeirentas, de imbondeiros fantasmas, de surucucus traiçoeiras, de desertores conscientes, de colonizadores ávidos de angolares, de soldados rudes e analfabetos defendendo a hipocrisia histórica, unhas afiadas nas forças cegas do destino. E o silêncio dos mortos… milhares de mortos… Abatidos sem sentido, cujas memórias levam aos caminhos do desespero, da cólera e dos uivos mordidos até ao derradeiro alento, ou gritos famintos de esperança, nos destroços da África perdida.

À ordem dos chefes, o tiroteio abrandou. Um disparo aqui e ali e logo o silêncio. Um silêncio enervante rente à estrada, ao rés da alma enrolada como um verme a rastejar na terra ensanguentada. Os odores da morte a emergirem das silhuetas esverdeadas dos morros e o vento a gemer árias breves nas hastes do capim. Nunca a música dos infernos soara tão clara, tão simbólica. Timbres compassados na lentidão do tempo, sinfonias fúnebres sem alvoradas. A natureza embebida no luto, ou o dobre de finados pela morte, sempre presente, adivinhada em cada curva, em cada esquina.

O soldado Elias ou Golias, de pé, no jipão, boca arrepanhada por gestos de raiva, levantava o corpo do alferes, antebraços suspendendo as costas. As pernas caídas para um lado, a cabeça tombada para o outro, na moleza ainda quente da morte. Trágico cenário de peregrinas histórias. No altar da Pátria, José de Arimateia chora Cristo descido da cruz, sem mulheres, sem a Mãe, nem Madalena lavada em pranto, adúltera sem apedrejamentos. Sem lágrimas. Menino de sua mãe, o alferes Meneses morria e arrefecia na solidão triste do dia aziago, nos confins do sertão, sem Deus, exilado da vida. Sinistros eram os uivos lúgubres e repentinos, que o cão Pantera começara a lançar, nos faros da adrenalina e dos fétidos suores e outros odores corporais.

Elias ou Golias pousou o cadáver no jipão, cerrou-lhe as pálpebras, fechou-lhe a boca, estendeu-lhe os braços. Ergueu-se tremendo, olhos nas alturas e assentou dois murros na própria cabeça. Chorava. Passou o olhar pelos camaradas e gritou:

- Puta de guerra!... Só assombrações!... Onde pára esse Deus dos padres?

O mosquedo rodopiava em volta do corpo do alferes, picando sobre as manchas sangrentas da camisa. As moscas azuladas, ávidas de sangue e de carnes, eram os primeiros insectos a procurar os cadáveres. O cão, irrequieto, tentava abocanhar os insectos, trincando no vazio. Os dentes afiados, em inconstantes tiques nervosos. A guerra não era apenas dos homens. As moscas e os cães invadiam-na. Ao rés da tragédia. Do uivo. Nas margens do sangue. Sagrado e apodrecido, derramado nas terras vermelhas do sertão. A dor e a tristeza arrepiadas nas fibras sensíveis da alma. A vida e a morte jogadas nas curvas das picadas, nas orlas das matas e nas incertezas dos trilhos, minados por traiçoeiras covas-de-lobo. E os soldados cumpriam. Sofriam os rigores do clima, os desesperos da sede, a monotonia da alimentação e os febrões do paludismo. Mas cumpriam. Disciplinados. Humildes. Heroicamente rudes. Nas iras contra a morte. Nas raivas dos mutilados. Cumpriam sempre. Nas calhas do destino. Nas agruras e nos trágicos acontecimentos da guerra, em nome da Pátria.

Todos blasfemaram o momento. Um só tiro no peito do alferes. Perdido na honra da guerra. Um só disparo guerrilheiro. Uma só bala certeira no coração do alferes Meneses. A mulher em Luanda: Penélope sem regressos, sem fio de meadas para dobar. Viúva da Pátria. Viúva da guerra inaudita. O povo a morrer com os pedaços do Império.


Albano Mendes de Matos






Bateria de Artilharia 147 - Coluna a caminho do Norte de Angola.



Norte de Angola, 1961 - Funeral de militar, enterrado num terreno de secagem de café.

terça-feira, 10 de junho de 2008

UMA PRISIONEIRA NA GUERRA COLONIAL


Albano Mendes de Matos

Era num dia sereno. Não fosse a guerra, podia dizer-se feliz.

A secção prosseguia no silêncio e nas cautelas próprias da acção ou batida de reconhecimento, nas terras de Gombe-ia-Muquiama, a meio caminho entre a Pedra Verde e lugar de Piri, vespeiro de guerrilheiros, nos relatórios inflamados das informações. Militares vigilantes, atentos aos trilhos, procurando vestígios do inimigo. Todos os olhares em redor da picada. Lonas e borrachas pousando na leveza dos rastos. Nas areias soltas do terreno. Sem ruídos. Nem sussurros. Apenas sinais. Polegar para a direita. Polegar para a esquerda. Mão estendida para a frente. Mão curvada para trás. Palma para o chão parar. Indicador nos olhos espiar. Indicador nas orelhas escutar. A prudência. A cautela. O sinal, o símbolo e a comunicação. O esoterismo e os malabarismos das circunstâncias. A audácia dos heróis. A palidez dos medricas. E a certeza da guerra, na vivência dos dias. Só guerra parida em todas esquinas, em todas as sombras, em todas as horas. No mexer das folhas. Nos troncos das árvores. Nos cheiros dos capins. No verde das ramagens. A esperança de não se lerpar. Guerra nos ventos e nos horizontes sem fim. E o horror da morte ajustado a todos os lugares. Nas realidades desta guerra, a alegria era estar-se vivo. Sentir-se a vida a pulsar, o sangue a palpitar nas veias. A sorte da roleta a rodar sobre as cabeças.

Como num relâmpago, instintivo pânico invadiu militares. Os ares riscaram-se de cores. Nas colinas dos medos e do terror. Vulto humano ou fantasma? A guerrilha tem os seus fantasmas, produzidos pelas aberrações da consciência, quando a atenção contínua e a ansiedade geram visões virtuais. Um dos soldados da dianteira não teve a calma suficiente. De pé, disparou de imediato. Funcionou o instinto de conservação. O subconsciente fervilhou num ímpeto. Acto contínuo, o dedo afagou o gatilho. As balas partiram. Zuniram nos ares. Atirar antes do inimigo atirar, na lógica da guerra. Princípio fundamental para a integridade do combatente. Isso, sentiam os militares. Necessariamente instruídos. O furriel miliciano comandante da secção deu uma palmada numa perna do atirador, gritando-lhe que se lançasse no chão e se abrigasse. Secção em terra, dispostos os soldados em posição de defesa, a zona foi batida pelo fogo, como provocação para uma resposta. Disparos de reconhecimento. Mas só o silêncio envolvia a picada. As arcadas dos peitos oscilavam de ansiedade. As respirações aceleradas. As lágrimas dos suores a descerem pelas faces. Eram momentos de grande tensão, onde se jogava a vida. Onde se podia morrer e onde se poderiam forjar heróis. Que a Pátria agradecia, pela palavra dos senhores mandantes das guerras e das políticas.

A poucos metros, uma silhueta de mulher negra ergueu-se atemorizada. Pés nus e gretados. Pernas abertas e braços levantados. Paralisada. Hirta. Panos escorridos até às saliências dos joanetes. Olhos parados de branco. Estátua de madona helénica. Antígona no campo de batalha, ante os dois irmãos contendores. Sempre no absurdo da guerra, a simbólica da mulher pacificadora. A mulher nos limites do pranto, nas orlas da morte.

Um soldado apontou-lhe a arma. O cano tremia, na oscilação da mirada. De imediato, o furriel desviou-a com uma pancada. O peso do silêncio amedrontava. O Sol ardia na terra ressequida. O desconhecido e o medo para além dos exíguos limites dos horizontes. A mulher paralisada. Perdida.

Secção organizada em posição de segurança, o furriel aproximou-se da negra, que continuava imóvel e fechada em pleno mutismo. Estátua de ébano, nos rumores do desespero. Apenas estremeciam as dobras do pano e remexiam as arcadas do peito arquejando, com as marés da respiração. A boca rasgada em jeito de comoção e espanto. Lábios bulindo levemente. Os olhos pupilando de medo. Os soldados aproximaram-se. O furriel falou-lhe. Ela não respondeu. “Não fala puto” - diz um militar. Súbito, um jacto de urina rebentou entre as pernas da negra. Escorreu para a terra. Uma mancha de lama alastrou entre os seus pés. O medo gerou a incontinência. Reflexos fisiológicos da comoção, em emoções de pânico. Perturbadoras tensões psíquicas e desequilíbrios emocionais condicionaram a fisiologia normal e geraram situações de involuntárias excreções. Os panos impregnados de urina plasmaram-se nas pernas. Estátua viva começou a tremer. As mãos agarraram os panos e torceram-nos sobre o peito. A luminosidade da tarde era rarefeita pelas cortinas de um cacimbo leve. O silêncio impregnava os ares. A negra incomodada. Ave perdida na violência do momento. E os soldados aguardando o desfecho da situação.

- Até te mijas, sua puta!... - gritou um soldado.

A negra acomodou-se no chão. Sentada. Pernas flectidas, joelhos afastados, pés cruzados, para trás. As mãos nervosas sempre a torcerem as pontas dos panos, com tremuras de pasmo ou de terror. Sem uma fala ou um murmúrio.

Puxada pela mão, obrigaram-na a caminhar. Troféu de guerra: prisioneira. Talvez mensageira dos guerrilheiros. Nessa condição, foi conduzida, ao aquartelamento, sob a cortesia dos soldados, já tomados de piedade e de dó. Não emitiu qualquer fala ou lamento. Apenas os olhos, muito abertos, pareciam espelhar os medos que lhe corriam no espírito.

Percorridos alguns quilómetros a negra parecia desfalecer. Sentada, apoiada pelo soldado Elias ou Golias, sugou avidamente uma chisca de água que lhe chegaram aos lábios ressequidos. “Dá-lhe é mijo, ou merda!...”, gritou um soldado. Os olhos submissos da negra agradeceram, com um lampejo de alegria. O corpo tremia-lhe. Enlaçou os dedos e apertou as mãos sobre o peito. Em volta, os militares em guarda tagarelavam e comentavam o estorvo que lhes fazia a prisioneira. “Um tiro nos cornos é o que ela merece”- comentavam alguns.

O soldado Elias ou Golias, herói da Pedra Verde, sempre voluntário, levantou a negra, baixou-se por trás, enfiou pescoço por entre as pernas dela e içou-a às cavalitas. A segurá-la pelos pulsos, carregou-a até à base da tropa, incomodado pelos odores da urina, que se evaporava dos panos. O corpo da negra, curvado sobre a cabeça do militar, rebentando de calores e suores, oscilava ao ritmo das passadas. De vez em quando, quebrava a mudez com um gemido. Talvez de dor. Talvez de agradecimento. A solidariedade e a fraternidade para com a população inimiga também existiam na guerra, para além de todas as violências e de todas as brutalidades.

Nas desvairadas terras angolanas, morria-se na guerra, morria-se por ferroadas de abelhas, morria-se pela picada da serpente surucu, morria-se de paludismo, morria-se de biliosa, morria-se com uma cornada de pacaça, morria-se na calema das praias e nas correntes dos rios, morria-se por engano, morria-se de traição e morria-se de pasmo. Por isso, nas cargas dos batalhões vinham caixões, para embrulhar os mártires, e padres para os rituais da encomendação das almas, tivessem sido os mortos cristãos ou não.

A prisioneira, sentada num banco do improvisado refeitório era motivo de curiosidade, de dó e de raiva. Deram-lhe comida. Singelo acto de piedade. Mas olhou-a com desprezo. Levou a mão em concha à boca e cuspiu para o lado. Foi encerrada numa barraca de madeira, que servia de prisão. Chegou-se a um canto, imóvel, na rigidez do medo. Estatueta de pensador quioco. Olhos fixados nas tábuas. Pensamento nos mistérios da vida. Ou em nada. No delírio dos terrores.

O capitão comandante chamou o Camões, negro servente que se apresentara da mata, fugido aos guerrilheiros, e trabalhava na tropa, pela comida e pela segurança, para ver se ele conseguia que a negra falasse.

O servente era alcunhado de Camões por ter um só olho. O outro fora-lhe arrancado por uma onça, que o atacara e lhe rasgara a face com as garras, quando, numa noite, ele abrira a porta da cubata, na sua tonga, para averiguar o que se passava, ao ouvir ruídos, nas proximidades.

- Camões vais à prisão e vê se consegues que a mulher fale - disse-lhe o oficial.

- Sim, meu capitão! - respondeu o Camões.

- Pergunta-lhe de onde é e o que fazia na mata - acrescentou o capitão.

- Está bem, meu capitão! Mas parece-me que ela não é destas terras - respondeu o negro Camões.

Capitão e soldados ficaram à espera que o Camões saísse da barraca com novidades. Passados uns minutos, o Camões saiu, rindo e coçando a cabeça.

- Então, o que disse ela, Camões? - perguntou o capitão.

- Ah, meu capitão!...- disse o servente.

- Desembucha, Camões!...O que disse ela?... - volveu o oficial, perante o silêncio de Camões.

- Abriu as pernas e: pumba!..., pumba!... - respondeu o negro, sumindo o olho que lhe restava e escancarando a boca de riso. Um riso boçal de satisfação.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

A MINHA GUERRA NA GUINÉ-BISSAU


O MEU ÚLTIMO DIA NA GUINÉ


Albano Mendes de Matos


Foi um momento emocionante o meu último dia na Guiné-Bissau, em 13 de Outubro de 1974.

O pessoal que restava do meu serviço, Contabilidade, saiu para o aeroporto de Bissalanca, logo pela manhã, como quase todos os militares que ainda lá se encontravam. Levaram rações de combate para as refeições. Creio que com receio de algum acontecimento. Permaneci no local do meu serviço, para entregar as instalações e materiais às tropas do PAIGC, com guias de entrega e tudo, como estava combinado. Fiquei apenas com um jipe e um condutor, militar português, para me transportar do Quartel-General de Santa Luzia para Bissau e, depois, para o aeroporto.

Cerca das 11 horas, chegaram 6 negros, escoltados por uma secção das tropas do PAIGC, a pedirem os vencimentos a que tinham direito, porque tinham sido soldados portugueses. Tinham direito aos vencimentos de Abril a Dezembro de 1974, como fora acordado. Os ex-soldados portugueses tinham fugido para o Senegal após o 25 de Abril, porque tinham receio que os prendessem ou fuzilassem.

As famílias avisaram esses ex-soldados para se deslocarem a Bissau, para exigirem o pagamento. Eu tinha pedido à Emissora da Guiné para avisar todas as pessoas, militares e civis, e as empresas que tivessem a receber alguma coisa do Exército Português, que o comunicassem até, creio, ao dia 10 de Outubro [de 1974].

Interessante foi o caso de uma Casa de Instrumentos Musicais pedir o pagamento de 6 clarins que tinham sido fornecidos ao Comando Militar da Guiné... em 1940.

Disse aos ex-soldados que já não havia dinheiro e o tesoureiro já se encontrava em Portugal. Responderam-me que eu queria era ir para Portugal gozar com o dinheiro deles. Levei-os à tesouraria e mostrei-lhes os cofres abertos, sem dinheiro e disse-lhes que poderia promover o envio do dinheiro, quando chegasse a Portugal, para a Embaixada na Guiné. Tomei nota dos números, nomes e da Unidade a que pertenceram. Entreguei-lhes uma declaração assinada por mim e pelo comandante da secção militar do PAIGC. Em Novembro/Dezembro enviei o dinheiro devido ao 6 militares, não tendo conhecimento se o receberam.

Chegadas as 13 horas, sem que tivesse aparecido qualquer elemento do PAIGC, nem o meu condutor, como lhe havia dito, para me conduzir a casa de um locutor da Emissora, português que ficou na Guiné, para almoçar. Com uma pequena mala, resolvi ir, a pé, para o forte da Amura, junto ao Cais do Pindjiguiti, onde tinha a minha bagagem.

Quando, na estrada, me preparava para caminhar, surgiu um jipe com um militar do PAIGC, mulato, de meia-idade, que me disse:

- Camarada, para onde vai?

Contei-lhe o sucedido e logo se prontificou levar-me à Amura, mas que lhe ensinasse o caminho, porque só tinha ido a Bissau, durante a guerrilha, uma vez, de noite, ao cinema na UDIB (União Desportiva Internacional de Bissau). Perguntando-lhe quem era, respondeu que era um comandante do Exército do PAIGC, que fora ver as instalações do Comando do Quartel-General, onde se iria instalar, ainda nesse dia.

Conduziu-me no jipe não à Amura, mas a um restaurante de um primo do meu condutor, português a quem o Governo da Guiné pediu para não sair, porque era o chefe da fábrica de descasque de arroz, situada numa ilhota, no rio Geba, em frente de Bissau.

Lá encontrei o meu condutor com uma grande bebedeira, não podendo conduzir o jipe. Disse-lhe que não se embebedasse mais, porque às 11 horas da noite tinha que estar junto do jipe, em frente do restaurante do primo, para irmos para o aeroporto.

Almocei e jantei na casa do referido locutor e andei pelas ruas e pelos bares de Bissau. Só encontrava guineenses que me cumprimentavam e desejavam boa viagem e muita sorte.

Dei por mim a olhar para as memórias portuguesas que ficavam por aquelas paragens: edifícios, estátuas, toponímia. E a recordar a história que me tinham ensinado, com navegadores, guerreiros, missionários e pacificadores.Imaginei os primeiros portugueses a chegar àquelas terras. E eu, agora, o último a passear pelas ruas de Bissau, no fim do Império.

Estavam lá mais portugueses, o Governador e alguns militares, mas não saíam à rua. Às 23 horas, foram sob escolta para o aeroporto. Também estava um navio com um Batalhão nas proximidades do porto, para zarpar quando o último avião da Guiné estivesse no ar, para a última viagem aérea de uma parte do Império.

Um pouco depois das 11 horas da noite, dirigi-me para o jipe. O condutor estava melhor da bebedeira. Com ele estava o primo. Alguns negros param a olhar para nós. Aproximaram-se. O jipe arrancou. Os guineenses ficaram a acenar, de braços levantados. Descemos pela avenida principal, subimos pelo lado do campo de futebol.

Sentia uma sensação estranha. Já na estrada do aeroporto, olhei para trás. Duas lágrimas saltaram-me dos olhos, recordando o sangue português derramado naquelas paragens. Era estrangeiro numa nova nação.

Já perto do aeroporto, o condutor perguntou-me:

- Meu tenente, onde deixo o jipe?

- Atira-o para uma barreira!

Parámos à entrada do parque do aeroporto. Desci com a pequena mala. O condutor colocou uma sacola no chão, subiu para o jipe e conduziu-o até uma pequena ladeira, ao lado da estrada, um pouco antes do aeroporto, para onde o encaminhou com um pequeno empurrão.

No aeroporto, para entrarem no último avião da Guiné, estavam o Governador, o Comandante Militar, alguns militares coadjuvantes, oficiais, sargentos e meia dúzia de soldados.

Para apresentarem cumprimentos de despedida, chegaram alguns chefes militares do Exército do PAIGC e o Presidente da Câmara Municipal de Bissau.

Era o fim da colónia ou província portuguesa da Guiné, já independente desde o mês de Agosto.





segunda-feira, 10 de março de 2008

A MINHA GUERRA EM ANGOLA

A BATALHA DA PEDRA VERDE

1961

Albano Mendes de Matos

Um obus 8,8 cm na Sanzala Quissacala, em frente da Pedra Verde, 1961.


Pedra Verde

Preparação do obus 8,8 cm para tiro.


Militares artilheiros, os Peras, do 3º Pelotão da Bateria de Artilharia 147, em Quissacala, junto da Pedra Verde

Ambulância e jipe, nas imediações da Pedra Verde, para evacuação de feridos.




Na manhã do dia 28 de Julho de 1961, travou-se uma das mais longas batalhas da da Guerra em Angola. A Operação, envolvendo um Pelotão Reforçado de Infantaria de Luanda, o Esquadrão de Cavalaria 149, a 4ª Companhia de Caçadores Especiais e o 3º Pelotão da Bateria de Artilharia 147, com armas ligeiras, pesadas e obuses, prolongou-se por mais de seis intermináveis horas. O palco ou o campo de batalha situava-se nas imediações da Pedra Verde, morro pedregoso, denominado Camucugonlo, com incidência na Picada da Catuta ou Senvo, Região dos Dembos, a Nordeste de Úcua, onde se acoitavam os guerrilheiros angolanos.

Na altura, tinha na ideia fazer reportagens escritas e fotográficas. As fotografias só foram tiradas a posteriori, mas o registo visual, ficou indelével na memória.

Registo parcial das minhas memórias nas acções na Pedra Verde.

A Operação de progressão foi suspensa. Havia que trazer os mortos e os feridos. A decisão foi tomada, sem demoras. Segundos podem salvar vidas. Indecisões podem causar tragédias.
O sargento enfermeiro e os maqueiros tinham que ir, por dever de especialidade. Outros militares foram voluntários. A solidariedade e a fraternidade acima de tudo. A guerra une os homens, fortifica o sentido de irmandade. O dever de assistir o irmão em sofrimento surge como valor supremo. O altruísmo, sempre como primeiro valor, nos transes difíceis.
Um condutor artilheiro, homem tripeiro, cara picada pelas bexigas, correu para o jipão. O soldado Elias arrumou duas macas na viatura e o sargento enfermeiro mandou seguir, com duas bolsas de socorrista. O jipão entrou na picada, curvou para a esquerda do monte Senvo e desapareceu engolido pelos capins.
O tenente-coronel comandante, sempre penteado para a guerra, binoculava os terrenos avante, o morro Senvo salpicado de arbustos, a clareira aberta de luz, mas fechada de segredos, a mata a ondear para os horizontes do rio Dange, o morro Camucongolo ou Pedra Verde a namorar com as antropomórficas Lemba-Lemba, elevações semelhantes a duas mamas, cristas elevadas ao rés dos céus e dos deuses. Sempre de pé, o comandante afirmava aparente serenidade, perante o desespero das horas, na corrida dos ponteiros, e a batalha para ganhar. Em presença, as memórias loucas de Alcácer Quibir ou o Quinto Império, na utopia de Vieira, a esfumar-se em manhã de névoas. Uma guitarra a trinar lamentações. O fado de ser português aventureiro e sonhador. Fernão Mendes Pinto, sem lei nem paz, da deriva dos sertões. O mundo disperso, feito de esperanças e de saudades. O nevoeiro da manhã trágica era a certeza a entrar nas realidades pátrias. Ou Pessoa na hora absurda e adversa da com a Mensagem premonitória.
O jipão artilheiro parou no local de segurança, onde o capitão Caçador Especial coordenava a condução das operações, no melhor dos mundos possíveis. A tragédia de Unamuno ou o optimismo de Voltaire, para além das crenças em milagres e das protecções das santas e dos santos, no rasto das divindades primitivas e das mentalidades arcaicas. As pressas na resolução da situação, que as fianças na Virgem não são tomadas em tempo de guerra.
O sargento enfermeiro, ovarense dos três costados, já um pouco cacimbado, dado à poesia popular, cantava, em quadras redondas, as saudades da mulher, do quintal, das couves e das alfaces repolhudas, cerceadas por lesmas e caracóis, tomou conta da situação e dos esforços a empreender. Lado a lado com o soldado Elias ou Golias, ambos arrastavam uma maca, aproveitando o sulco de uma pequena ravina que corria, pela direita, na direcção dos feridos e dos dois socorristas. Rastejavam puxando as macas, palmo a palmo, que, para maiores facilidades, foram atadas a um pé. Improvisação que não consta dos manuais da evacuação bélica. As balas picavam nas proximidades, num plano mais elevado. O mais pequeno descuido seria a morte. Sempre rastejando, rentes ao solo, o sargento e o soldado Elias ou Golias chegaram junto do alferes Pombinho que, deitado de costas, gemia dolorosamente, contorcendo-se em angústias de morte. O peito da camisa em postas de sangue e de poeira, com as negras varejeiras sugando os coágulos, numa avidez estonteante, sempre a saltitarem, com zumbidos de asas, em revoadas enervantes. Os olhos do oficial revirados para o branco, o rosto pálido, os membros em tremuras palúdicas. Um fiozito de sangue a escorrer do nariz e a cair na boca, onde borbulhava uma respiração ofegante. O alferes angolano, tomado de pavor e de angústia, no jardim de Getsêmani, não de olivas, mas de cafezeiros, justiçado através do sacrifício, sangrava no calvário da Pidada da Catuta. Com as forças que ainda lhe restavam, gritava:
- Matem-me!... Matem-me!... Por favor!...
Em esforços de raiva, o sargento enfermeiro e o soldado Elias ou Golias ajeitaram carinhosamente o corpo do alferes na maca e ajustaram levemente as cintas imobilizadoras. Entre a vida e a morte, no jogo da guerra, nos transes da raiva e do desespero. Na miséria dos homens que mandavam na guerra, para lá da protecção e dos desígnios dos deuses, que a Pátria invocava, para justificar a sua acção civilizadora, na catequização dos negros, apresentando-os como crianças adultas, de pensamento e espírito pré-lógicos, carentes da ensinança lusíada.
Chegaram ao corpo de um soldado negro, que apanhara uma rajada pelas pernas, esmigalhando-lhe os ossos. Olhos muito abertos e uns ligeiros suspiros nos lábios sangrando poeiras. Os calções azuis ensanguentados. E sempre as moscas varejando. O preço de ser português, com o nome registado nos papéis do Imposto de Palhota e nos cadernos do trabalho voluntário para o Estado, ou a dívida para com uma Pátria longínqua, para lá dos mares e dos céus. Arrumaram o ferido na maca. Outros feridos esperavam mão salvadora, mão que os libertasse daquela descida aos infernos da guerra, na Picada da Catuta, na picada da morte, arvorada em visão dantesca e demoníaca, onde os clamores eram uivos de raiva. Que os mortos seriam retirados depois.
Os Caçadores Especiais sempre a fazerem fogo de protecção, varriam a saída da mata, que era zona de morte, cobrindo a acção de salvamento dos feridos e da recolha dos mortos.
Como transportar as macas com os corpos feridos?
A pulso, sem cobertura natural do terreno, era impossível sem serem atingidos pelos tiros dos guerrilheiros. Puxar pelas macas pesadas, a rastejar, era penoso e difícil. O sargento enfermeiro mandou um maqueiro comunicar ao capitão Caçador Especial que precisava de cordas para retirar os feridos. O capitão mandou uma estafeta à tropa da retaguarda a pedir as cordas. Por sorte, a palamenta dos obuses estava dotada de cordas com dez metros. Logo a estafeta, qual Mercúrio de pés alados, no jipão da Artilharia, correu com as cordas misericordiosas através do Monte Senvo ou Olimpo, na Maratona trágica da Catuta.
O sargento enfermeiro rastejou para a maca do alferes. O soldado Elias ou Golias rastejou para a outra maca. Ataram as cordas às macas, com firmeza, de modo a poderem ser puxadas. Afastaram-se uns metros e experimentaram. As macas deslizaram sem grandes dificuldades. Rastejaram e esticaram as cordas no seu comprimento. O sargento enfermeiro, o soldado Elias ou Golias e os dois soldados maqueiros puxaram pelas cordas. As macas, empeçando nos caules do capim e nas saliências do solo, venceram as distâncias para a segurança, para a libertação. Chegou primeiro a maca com o alferes, que logo foi levada para o jipão da Artilharia, que de imediato arrancou para a estrada. Depois, a maca com o soldado negro, que foi levado, em braços, para a retaguarda, até ao regresso do jipão. O soldado Elias ou Golias rastejou, com a maca, sempre praguejando, “Filhos duma puta! Filhos duma puta!”, para junto do outro soldado negro, ferido numa anca e um tiro no pescoço. Colocou-o na maca e procedeu de igual modo, até o ferido estar em lugar seguro e logo foi transportado para a zona de reunião, determinada pelo capitão Caçador Especial.
O terceiro ferido, um soldado negro, já não precisou de maca. A Parca da morte cortara-lhe o fio da vida, derramando-lhe o sangue no campo da honra, na Picada da Catuta. Honra, palavras eivada de crença nacionalista, com sentido simbólico na ara dos sacrifícios patrióticos, de negros e de brancos, imolados em nome de uma civilização, no Altar da Pátria.
- Matem-me!... Matem-me!... Por favor… matem-me!... - gritava o alferes Pom-binho, rasgando a camisa, com mãos agitadas por excessos de dor e de rancor.
O alferes miliciano médico preparou-o para a evacuação, adaptando compressas nas feridas, mumificando-lhe o tronco com algodão e ligaduras. Injectado com morfina, com o rosto lívido, fechado numa máscara de dor, foi acomodado na maca de campanha. Colocada a maca num jipe, improvisado de ambulância, foi levado para Úcua, onde uma avioneta o esperava, numa pista de aterragem improvisada numa plantação de sisal, para o transportar para o Hospital Militar, acompanhado por uma enfermeira paraquedista, que fazia o seu baptismo de guerra, na evacuação de feridos em combate.
- Matem-me!... Matem-me!... - foram os últimos gritos do alferes Pombinho, abafados pelo roncar do jipe-ambulância.
Na berma da estrada, ficaram, enrolados pelo vento, os farrapos ensanguentados da camisa azul esbranquiçado do alferes, talvez o alvo que o vitimou.
O jipão artilheiro, viatura de ligação entre a frente de batalha e a retaguarda, logo chegou com os dois soldados negros feridos. O soldado Elias ou Golias saltou do jipão e, correndo para o alferes artilheiro, gritou, meio perdido do juízo:
- Meu alferes!... Aquilo é uma assombração!...
- Calma, Elias!... – disse o alferes.
- Uma assombração, meu alferes!... É de um gajo dar em doido!...
Depois de um comovido silêncio, o soldado continuou:
- Há lá mortos estendidos pelo capim, crivados de balas, por aqueles filhos de uma puta! Precisam é de bordoada nos cornos! Grandessíssimos cabrões!
- Senta-te um pouco. Acalma-te. Que não há-de ser nada.
- Não há-de ser nada?... Aquilo?...
- É da guerra, Elias!
- Uma guerra de merda e de mortandade é o que é!...
Observados pelo médico e tratados pelos maqueiros, de imediato, os feridos seguiram para Úcua, numa GMC improvisada de ambulância. Feridos, libertaram-se do inferno e da morte.
- As misérias da guerra são os mortos, os feridos, os estropiados! - disse o médico miliciano para o tenente-coronel comandante.
- Não fomos nós que a inventámos! É tão velha como o homem! - comentou o tenente-coronel comandante, passando a mão pelo risco do penteado.
Na frente de batalha, parecia agora haver alguma acalmia. Os disparos eram espaçados. Ouvia-se um ou outro metralhar, ao longe, para os lados da Pedra Verde. Ou os guerrilheiros estavam a retirar ou eram disparos ardilosos, simulando a retirada.
- Os gajos não são matumbos, não! – comentou o alferes artilheiro para o comandante, que lhe fora ordenar para fazer mais umas sessões de tiro de flagelação sobre a picada da Catuta.